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Dono de um império, Claude Troigros alfineta: “o bom cozinheiro tem de ter boca absoluta”

Guilherme Grandi, com Folhapress
30/11/2018 12:27
“A cozinha pode ser criativa e ainda assim uma merda.” Claude Troisgros (62) lembra-se desse ensinamento de Paul Bocuse, que morreu em janeiro deste ano, para traduzir o momento em que está em sua carreira de quatro décadas, distante da obrigação de ser um “eterno revolucionário” e mais sintonizado com uma “cozinha de panela”.
Em seu novo livro, Claude conta um pouco da própria história pela cozinha, mas dando dicas para as pessoas (mesmo os cozinheiros de fim de semana) manipularem os alimentos. Foto: divulgação.
Em seu novo livro, Claude conta um pouco da própria história pela cozinha, mas dando dicas para as pessoas (mesmo os cozinheiros de fim de semana) manipularem os alimentos. Foto: divulgação.
O chef, nascido na França e criado no andar superior do restaurante da família, mudou-se nos anos 1970 para o Brasil, onde se tornou uma das principais referências na gastronomia. E hoje, sem perder o carisma e a humildade, comanda um império com cinco restaurantes no Rio de Janeiro, casa de eventos, bufê, participa de programas de televisão em canais por assinatura, e está lançando um livro que conta sua trajetória pela cozinha.
“Claude Troisgros: Histórias, Dicas e Receitas”, editado pela Sextante, chega às livrarias na próxima semana não como “mais um livro de receitas”, nas palavras do chef. Na obra, ele eterniza a trajetória da família na cozinha –seu avô foi um revolucionário na maneira de pensar serviço e técnicas, e seu pai, um dos protagonistas da nouvelle cuisine.
Agrega às páginas, ainda, dicas que acumulou no dia a dia de sua carreira – às vezes mais pessoais do que técnicas. Orienta o leitor sobre como escolher, comprar e armazenar ingredientes, ou como manipulá-los para arrancar deles o melhor resultado.
Não se deve machucar a cebola, ela não deve chorar. É muito louco, porque geralmente ela que faz a gente chorar”, explica o chef aos risos à Folha de São Paulo.

Cozinha básica

Claude insiste em reforçar a importância dos preparos básicos no repertório de qualquer cozinheiro. Para ele, caldos são a essência de todo molho, e que dão estrutura à comida. O chef conta, ainda, que a cozinha não deve ser seguida à risca. “Você precisa ter a base, saber os preparos tradicionais, entender a cultura. O resto é uma grande brincadeira”, diz.
Ele considera que um bom cozinheiro é aquele que tem o balanço entre os cinco elementos na boca e a elegância em combiná-los – acidez, amargor, sal, açúcar e a percepção do umami. É o que ele chama de “boca absoluta”, que todo cozinho deve ter.

O paradigma do chef

Um chef, que é um posto que se conquista, “pode ou não ser criativo”. “Hoje parece uma obrigação um cozinheiro ser criativo. Você pode comer coisas inacreditáveis, que são boas ou não. O mais importante é a qualidade, o sabor, o ingrediente“, explica Claude.
Há um paradigma embutido nisso, em que se pese que Claude pertence a uma família que revolucionou a gastronomia com a nouvelle cuisine, movimento que se voltou para ingredientes da estação em preparos mais leves, alimentos menos cozidos e sabores acentuados.
Ele próprio é ator de uma transformação brutal no cenário da cozinha brasileira, com a qual se envolveu a partir de 1979, quando chegou ao Rio para comandar o Le Pré Catelan.
Diante de matéria-prima de “péssima qualidade”, impedido de reproduzir com o mesmo esmero as receitas francesas, passou a utilizar ingredientes brasileiros e tratá-los com as mais apuradas técnicas de seu país.
Eis que surge um repertório de elementos como licor de jabuticaba, pato com maracujá, purê de feijão-branco, cheesecake de goiabada, jiló caramelizado, sorbet de caju com cachaça.

Oui, Brésil!

Em 2016, Claude foi reconhecido pelo 50 Best Restaurants pelo conjunto da obra de seus trabalhos desenvolvidos no Brasil. Foto: divulgação.
Em 2016, Claude foi reconhecido pelo 50 Best Restaurants pelo conjunto da obra de seus trabalhos desenvolvidos no Brasil. Foto: divulgação.
Ainda que criativa e ousada, sua cozinha também sustenta certa simplicidade. Foi em seu Olympe, restaurante sofisticado fundado há mais de 30 anos, que incorporou o biscoito de polvilho, “que não fazia parte da nossa cultura, não tínhamos na França, os estrangeiros ficam loucos”, analisa.
Para imprimir-lhe personalidade própria, Claude acrescentou curry, que dá um tempero a mais. Pois hoje, esse símbolo da praia carioca, homenagem à mandioca e à cultura local, ganhou marca do chef.
Sua receita, em parceria com uma família mineira, resultou num produto que acaba de ser lançado em supermercados e empórios de todo o país.

Da Variant ao império

Em 1982, Claude vendeu sua velha Variant e as poucas joias de sua mulher para abrir um restaurante com 30 metros quadrados, geladeira e fogão usados. O pequeno espaço gerou uma série de empreendimentos. Promete para o verão um bar anexo ao Chez Claude, casa no Leblon para a qual tem se voltado com mais afinco.
“É uma cozinha de verdade, que tem alma; não é mais um tracinho e um pontinho.” É ali que Claude trabalha “sem a obrigação de ser criativo”, num ambiente dinâmico, cuja cozinha, integrada ao salão, estimula a interação com o chef.
A loja ao lado deve acolher o futuro Chez Batista. O homenageado, João Batista Barbosa de Souza, começou a trabalhar com Claude há quase 40 anos, quando bateu na porta de seu restaurante pedindo emprego na pia. De lá para cá, passaram a dividir a cozinha – e também cama de solteiro em viagem, programa de televisão, pista de forró e o apreço pela culinária brasileira.
“A evolução que vi nesses anos não foi só da gastronomia, mas do produto e do produtor. Hoje, temos no Brasil ingredientes de grande qualidade que são comparados aos europeus. E temos mais que eles: maracujá, goiaba, maxixe, quiabo”, diz.
Ele explica, ainda, que o Brasil vem se destacando no mundo com bons chefs nativos. Para Claude, acabou essa onda de chef internacional fazer sucesso no Brasil.
“Hoje temos chefs nascidos aqui que conhecem a cultura e os produtos do país. Tudo isso gerou uma bola de neve que fez com que a gastronomia do Brasil ficasse em plena forma e falada internacionalmente”, conclui.
Também é fruto dessa paixão pelos trópicos o documentário “Os Cinco Sentidos de Claude Troisgros”, registro de uma viagem de moto pelo rio São Francisco na qual visitou mercados populares e personagens que conheceu por acaso pelo caminho. O filme, de uma hora e meia, deve ir ao ar em janeiro no GNT, canal que exibe o reality “The Taste Brasil”, do qual participa.
Em sua carreira, Claude atravessou algumas mudanças radicais – a nouvelle cuisine, a cozinha de fusão, a vanguarda espanhola. E qual é a próxima? “Pílulas?”, questiona.
Para o chef franco-brasileiro, que hoje tem ao lado nos negócios seus dois filhos, Carolina e Thomas, o cozinheiro está cada vez mais ligado ao produto. “Não é uma revolução, porque isso existe desde o meu pai, mas eu sinto uma volta a isso. O que as pessoas querem é comer bem e se divertir“.
Serviço:
“Claude Troisgros: histórias, dicas e receitas”
Autor: Claude Troisgros
Obra com 320 páginas, disponível a R$ 149,90 (veja onde comprar)
Editora: Sextante