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Nem todo cozinheiro é chef e veteranos de profissão explicam o porquê
Nem todo cozinheiro é um chef, ou algum dia se tornará um, e está tudo bem. O problema é que, nos últimos anos, o termo ganhou um significado bem diferente de tudo o que o envolve o trabalho de fato. E ele está longe de ser associado a alguém que começa o dia esfregando azulejos e lavando pilhas de louça. No 13 de maio, eleito em 1999 pela Associação Brasileira da Alta Gastronomia (Abaga) como o dia nacional do chef, o Bom Gourmet conversou com três veteranos da cozinha para discutir o que esta palavra representa.
Para Laurent Suaudeau (francês radicado no Brasil há 40 anos e pupilo do ícone da nouvelle couisine, Paul Bocuse), Celso Freire (um dos patronos da gastronomia no país) e Gustavo Guterman (cozinheiro e professor do Instituto Federal Fluminense), a definição é simples: chef é a pessoa que assume o posto mais alto na hierarquia da cozinha depois de muito tempo. E trabalho árduo.
Depois de anos de joelhos dobrados no chão da cozinha, anos de mãos queimadas e dedos cortados e costas doloridas, de sucessos e fracassos. “É um momento da carreira, como em qualquer outra profissão. Enquanto comando uma equipe e sou responsável por uma cozinha, sou chef; depois, volto a ser cozinheiro. Mas está difícil fazer a humanidade entender isso”, diz Celso Freire num suspiro quase exasperado.
“Ninguém é chef porque fala mais alto ou usa uma roupa bacana ou tem um diploma na mão. É a pessoa que faz a roda girar. É quem caminhou, experimentou, acertou e errou para, então, ter capacidade de ocupar um cargo na hierarquia da cozinha”.
É mais ou menos o que Gustavo Guterman, professor de gastronomia há oito anos, tenta explicar a cada nova turma de gastronomia do Instituto Federal Fluminense, em Cabo Frio (RJ). “As pessoas entram com a certeza que vão se transformar em chefs e vão flutuar de dolmã num restaurante dando ordens. Essa é a última coisa que a maioria dos cozinheiros quer. Porque ser chef significa, além de cozinhar excepcionalmente bem, entender de gestão de pessoas, de infraestrutura, de hidráulica, de administração de resíduos“.
O mito do chef instantâneo
Assim como em qualquer profissão, chegar ao posto mais alto da carreira leva tempo. “As pessoas precisam entender que um ano não são dez. O que é um diploma de cozinheiro? É um papel. Muitos ganham esse papel e nem se tornaram cozinheiros ainda. Ninguém vira cozinheiro em seis meses ou em um ano”, critica Celso Freire. A análise do veterano bate de frente com os números: no ano passado, só no Senac, 25.301 brasileiros concluíram cursos relacionados à gastronomia. Em cada estado, porém, há outras dezenas de cursos técnicos e universitários que aumentam esta soma.
Foi só depois de uma década de carreira, por exemplo, que o renomado Laurent Suadeau se reconheceu como chef. O momento em que isso se deu ainda é nítido nas memórias do senhor de 62 anos, cozinheiro desde os 14. “Foi em 1981, quando cheguei ao Brasil para representar o monsieur Paul Bocuse [o papa da gastronomia] no restaurante Le Saint-Honoré, no Rio de Janeiro. Só então me senti com liberdade total para criar e administrar algo por conta”.
Seu tempo de aprendiz durou dez anos e começou com um pré-adolescente Laurent dormindo na adega do restaurante em que trabalhava. “Era muito tarde para voltar de bicicleta para casa e, como eu terminava o dia muito cansado, ficava por lá mesmo. Mas eu era muito feliz”. Na cozinha, sua tarefa era restrita a limpar tudo, cuidar das saladas e, no máximo, preparar o vinagrete. “Era tudo o que eu tinha direito a fazer”, relembra.
Os três profissionais apontam as dezenas de programas de culinária por criarem uma falsa imagem de um chef instantâneo rodeado de glamour, apesar da intenção de democratização da gastronomia. “A mensagem transmitida é a do chef estrela, mas o caminho árduo não está sendo mostrado. Cozinha não é só uma imagem bonita, é um monte de sensações: é a panela que queima a sua mão, é o risco da faca te cortar, é toque e paladar. Será que essa mensagem está sendo passada?”
Altos status, baixos salários
Para Guterman, a discussão é ainda mais crítica. Ele questiona a falta de um órgão regulador da profissão, que seria essencial para aumentar o nível salarial dos cozinheiros gerais no Brasil. “O status é muito maior que qualquer pagamento. Começa pelo fato de não existir um piso salarial; o salário médio de um cozinheiro é o mínimo [R$ 998]. Isso é suficiente para sustentar uma família?”.
“Somos hoje 2.7% do PIB brasileiro na indústria de restaurantes e quase 50% da força de trabalho no turismo. Precisamos olhar para estas pessoas e valorizar o trabalho, não o status”.
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