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Do churrasco à pera ao vinho, os pratos da Idade Média que se comem ainda hoje

Flávia Schiochet
16/11/2017 19:13
O pesquisador Renato Toledo Amatuzzi não economiza palavras para descrever seu objeto de estudo: a cozinha da Idade Média, “época super injustiçada”, era rica em técnicas e prezava pela qualidade dos ingredientes usados.
Mestre em História Medieval e integrante do Núcleo de Estudos Mediterrânicos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Renato ministrará a palestra “Sabores e Saberes à mesa: a cultura medieval e suas múltiplas perspectivas” em Carambeí, no interior do Paraná, neste sábado (18). “A ideia é desmistificar esses preconceitos bobos que a Idade Média sofre. Mostrar as contradições, como todo período tem. Mas não vamos cozinhar dessa vez”, adianta.
Em entrevista ao Bom Gourmet, o pesquisador contou sobre ingredientes, técnicas e costumes do período do século 13 ao 15 na região do Reino de Aragão, hoje Catalunha. “Quando falamos de cultura alimentar, cada região da Europa tem a sua, porque o clima muda e a oferta de alimentos também. A disponibilidade de alimentos no Reino de Aragão sofreu uma grande influência do clima quente e por estar nas rotas comerciais marítimas, além dos povos que ocuparam essa região.

O que comiam os nobres e os pobres na Idade Média?

Na alimentação dos nobres havia mais carne, faisão, gado com cortes mais frescos. A nobreza contratava cozinheiros renomados entre as cortes para preparar os alimentos e focavam no aspecto qualitativo dos ingredientes.
Os animais eram criados e abatidos nos arredores da cidade para que o abate não contaminasse os rios e o mau cheiro não impregnasse a cidade. Isso também evitava a transmissão de doenças. As carcaças eram levadas para a cidade e vendidas lá dentro. Os servos eram proibidos de comer algumas carnes, como a de caça. Nem os servos nem os camponeses podiam caçar.
Os camponeses comiam carne, às vezes em menor quantidade porque eram caras. Comiam carne branca, como peixes e aves, mas carne vermelha era mais difícil. Às vezes o único bem que a família possuía era um boi. De legumes, eram alcachofra, ervilha, cenoura, beterraba, usavam todos misturados. Frutos do mar e peixes de mar e rio eram bastante consumidos na Catalunha porque a costa é banhada pelo Mar Mediterrâneo. Os pescadores levavam os pescados frescos direto para os responsáveis pela cozinha da ordem da nobreza, que compravam deles. Era uma sociedade agrária, com crescimento demográfico e a alimentação empregava muita gente, só na hierarquia da cozinha dos nobres havia 11 funções.
Tem outro mito sobre a carne: dizem que se usavam muitos temperos e especiarias para camuflar o sabor da carne, que seria podre. Não tem lógica comprar um negócio caro como carne e gastar o mesmo em especiarias. A demanda por carne era alta, então a carne era fresca. A carne vermelha era um símbolo de força e poder e recomendava-se aos homens comer para dar energia vital interna para ter filhos. Os legumes também eram consumidos por nobres, mas eram vistos como comida de camponês. Não tinham conhecimento de vitaminas e valor nutricional, não sabiam que faz bem para a saúde, como sabemos hoje.

Quais eram as técnicas usadas para preparar os alimentos?

Assar, cozinhar em caldos, fritar, defumar, curar no sal grosso, fazer conservas e compotas.
O que mudava da ordem da nobreza para a ordem camponesa são as técnicas de preparo usadas. Os pratos dos nobres levavam especiarias caras como açúcar, pimenta-do-reino, noz moscada, canela. Essas especiarias eram tão caras que se fazia até perfume delas. Muitas vezes, porque o açúcar era muito caro para usar na cozinha, adoçava-se com mel. Usava-se o açúcar para fazer torres e enfeitar a sobremesa.
Um sabor que era presente é o agridoce, por influência árabe, uma técnica sofisticada pela qual a burguesia tomou gosto. Os nobres e burgueses traziam essas tendências do norte da África. Como hoje, os mais ricos acabam ditando a moda e popularizando.
Os pobres e camponeses plantavam o que os nobres pediam e se desse certo, acabava caindo no gosto popular e sendo consumido também pelos mais pobres. Há pratos que até hoje consumimos, como pera glaceada com molho de vinho tinto. As frutas eram abundantes e faziam as compotas com cal e mel, porque o açúcar era muito caro para usar em algo barato como fruta.
Os camponeses faziam muita bolacha e biscoito assados, misturavam legumes e verduras à farinha para fazer uma espécie de pão preto e de grãos, mais barato que a farinha branca. Levavam esses preparos para o trabalho, eram refeições que sustentavam e fáceis de transportar.
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Como era o serviço nos banquetes?

A ordem das comidas eram preceitos da dietética, de acordo com o que se acreditavam ser as propriedades terapêuticas dos alimentos. Nos banquetes, começava-se com um caldo para aquecer o estômago e preparar a digestão. Aí vinham os outros pratos, como as carnes. Fechavam com uma fruta ou manjar feito com leite, açúcar e clara de ovos.
Outro mito que não se sustenta: fala-se que não usavam talheres para comer. Não usavam porque sentir o alimento era importante no processo de se alimentar, era uma experiência sensorial importante para eles. Rasgavam o pão com a mão e nas crônicas há registros sobre “a alegria de comer”.
A Idade Média teve períodos de fome e escassez de comida, mas foram mais de mil anos e os períodos de escassez alimentar não representam nem 10% desses mil anos. É uma época super injustiçada. Para eles, se faltasse pão, mesmo que houvesse outros alimentos, como carne e legumes, para eles era sinônimo de fome, porque era a base da alimentação.

Quais pratos eram servidos nos banquetes?

Um banquete da nobreza teria caldos de frango quente, carnes assadas de animais inteiros para impactar os convidados. Também havia muitas frutas cristalizadas ou frescas, como maçã, lima, limão, uvas, damasco, pêssego, nectarina, ameixa, melão, nêspera, pera.
Uma receita medieval que ainda é servida é a pera glaceada com calda de vinho. Eu vi em uma prova do Masterchef os cozinheiros fazendo e ao comparar com a técnica descrita em um livro de receitas do século 15 constatei que o preparo é feito da mesma maneira. Havia um requinte de técnicas e o aproveitamento máximo dos ingredientes.

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