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“Em Floripa, as pessoas não gostam de comida ousada”, diz chef que trabalhou com um dos melhores do mundo
Eudes Rampinelli nasceu no Espírito Santo, mas seu sotaque é bem manezinho (dialeto peculiar de quem nasceu em Florianópolis). Desenvolveu um paladar apurado depois de conhecer grandes restaurantes europeus, na adolescência. Acabou obcecado por gastronomia e hoje se vê como um estudante compulsivo, que não consegue ler nada que não seja sobre comida. Sua formação inclui escolas de Portugual e Espanha e um estágio de três meses no El Bulli, do renomado chef Ferran Adrià (um dos melhores do mundo).

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Foi o primeiro chef brasileiro a fazer o curso de texturas, chamado no Brasil de gastronomia molecular. Eudes não esconde seu horror pela expressão. Para ele, gastronomia molecular é invenção brasileira de quem não faz ideia do que está falando. Também não gosta dos programas de culinária da TV, com exceção de alguns episódios do Masterchef Profissionais Austrália. E também não tem apreço por quem define seu trabalho como alta gastronomia. Para ele, sua cozinha pode ser definida como criativa e autoral. Apenas.

Em Floripa, comanda dois restaurantes em sociedade com Guga Kuerten, para quem cozinhou por um ano no período em que o tenista fez uma cirurgia no quadril e não podia sair de casa. O Jay Bistrô, em Jurerê Internacional, abriu em 2013 e não tem dias ruins. O menu da casa é formado por pratos sofisticados, com muita influência da cozinha mediterrânea e uma dose caprichada de criatividade do chef. Para evitar a “fúria” dos clientes há quatro pratos que o chef não pode cortar do menu: o ossobuco com nhoque de batata baroa (R$ 79); o peixe branco do dia com purê de banana da terra, farofa de brioche e molho de panceta defumada (R$ 79); o polvo com molho de laranja thai (R$ 79); e as vieiras ao beurre blanc de maracujá (R$ 56).

Já o Santa Cucina, é a mais nova aposta do chef. Abriu há quatro meses no Centro da capital catarinense e tem cara de um restaurante italiano moderno, com destaque para um extensa carta de drinks.
A sua formação é clássica?
Não, é bem moderna. Eu comecei a estudar a cozinha clássica, mas era muito chato. Então eu fui logo paras escolas dos chefs, que são pequenas. Porque aí você pula metade do caminho e aprende realmente o que interessa. Eu não queria ficar estudando manipulação de alimentos. E só a prática que te forma. Foi nos grandes restaurantes que eu trabalhei que eu comecei a aprender. E vi que eu não cozinho nada, na verdade, porque esses caras sim, cozinham muito.
Como começou a tua experiência em Florianópolis?
Logo que eu voltei de Barcelona eu vim para Floripa porque casei com uma manezinha. Comecei a trabalhar na antiga casa The Double Seven, um lounge bar e restaurante que fez muito sucesso. Esse lugar foi uma escola para mim. Lá eu comecei a fazer meu nome, fui entendendo o que as pessoas gostam de comer aqui e conheci muita gente, como o Guga. Quando o bar fechou, ele me chamou para cozinhar para ele. Fiquei cozinhando pro Guga e para família dele por um ano. E quando eu saí, porque queria montar meu próprio negócio, ele quis ser meu sócio. E a gente montou o Jay Bistrô, em Jurerê Internacional. Somos três sócios no Jay e no Santa Cucina, que a gente acabou de abrir no Centro. A proposta lá é ser o italiano mais moderno da cidade, com uma pegada bem forte de drinks e coquetéis.
O que você faz não pode ser chamado de alta gastronomia?
Não. Eu prefiro chamar de cozinha criativa, gosto de criar as coisas. Por exemplo, hoje em dia o cara vai ali e faz um risoto e acha que tá fazendo alta gastronomia. Risoto eu nem queria ter no meu cardápio, na verdade, mas as pessoas pedem muito aqui. E eu não entendo isso de sair de casa para comer um risoto. Isso o cliente faz em casa e às vezes fica até melhor do que o dos restaurantes. A pessoa tem que sair de casa para comer uma coisa que ela não consegue fazer. Tem que valer a pena a experiência. A minha proposta, como chef, é criar uma experiência que tire a pessoa de casa. E essa experiência não é só a comida em si. É tudo: o atendimento na hora de fazer a reserva, tudo.
O que as pessoas gostam de comer em Floripa?
As pessoas não gostam de coisas muito ousadas. Elas gostam do clássico bem feito com um ou outro toque criativo. Não tem como fazer menu degustação aqui. Não vai dar certo. Elas gostam do diferente, como é a proposta do Jay Bistrô, mas não pode fugir muito do conhecido. É diferente, mas é um polvo, um pato, uma lagosta. Não posso colocar um cérebro de macaco, por exemplo, que ninguém vai querer comer (risos). Eu queria fazer um prato de ouriço, mas acho que não vai ter saída. Na verdade, existem vários tipos de público, né? Metade gosta de quantidade: churrasco, petiscos. A outra metade gosta dos restaurantes tradicionais, como os italianos. E entre essas duas metades tem uns 5% que buscam alguma experiência bem diferente, que nem chega a ser alta gastronomia. Isso não tem em Floripa ainda e vai demorar muitos anos para acontecer.
Como está o cenário da gastronomia de Floripa?
Parado. Só abre hamburgueria, sushi e pizzaria. Eu estou louco para chegar alguém novo, como eu, para inventar umas coisas novas, criativas, paratos diferentes. Mas ninguém quer trabalhar com cozinha porque é muito desgastante.
O que é fundamental num chef?
No Brasil, eu acho que as pessoas aprendem muito pouco. Pode ver que os melhores chefs daqui moraram e estudaram fora. É claro que tem uns gênios que aprendem por conta própria. Também tem, mas é raro. O que eu aprendi morando fora é que a gente sempre precisa estar de olho no que está acontecendo no mundo da gastronomia. Tem que estudar. O diferencial mesmo é criatividade do chef na hora de criar um prato, um menu, um ambiente. Muita gente está cozinhando e não faz ideia do que está fazendo. Não sabe que técnica está usando, reação química nenhuma. Quando você sabe o que está fazendo, é possível criar. Fazer uma gastronomia autoral. Ser diferente dos outros. Mesmo os pratos mais simples. Como em Floripa eu sinto que não posso ser muito agressivo nas criações, eu pego pratos que as pessoas costumam conhecer e dou um toque diferente, faço algo mais criativo em cima. Eu queria ser ainda mais criativo, mas aqui ainda não dá.
Tem algum chef que inspira o teu trabalho?
O que eu mais gosto é o Ferran Adrià. Eu estagiei por três meses no El Bulli e pude ver aquela loucura toda. Um dos pratos que eu comi lá e fiquei enlouquecido foi um gaspacho desconstruído. Era muito louco. O Ferran é minha inspiração por causa da criatividade dele. Ele começou a usar sifão há 25 anos para fazer uma espuma diferente, não só chantilly. Hoje em dia tem restaurante que faz isso e todo mundo acha o máximo. Lá na Catalunha tem o Miró, Picasso, Salvador Dalí e ele. Ele é tão gênio quanto esses caras. O Ferran criou novas técnicas, quebrou paradigmas, começou a usar ingredientes que ninguém nunca tinha pensado em usar. Eu só entendo tudo isso porque eu morei lá. Fui o primeiro chef brasileiro que fez o curso de texturas com o Albert Adrià, que é irmão do Ferran. Eu acho um absurdo esse negócio de gastronomia molecular. Foi o Albert que criou essas técnicas. Ele foi numa fábrica de alimentos mexicanos, que tinha em Barcelona. E lá ele viu um molho que tinha umas bolinhas no meio. Ele perguntou para alguém o que era aquilo e descobriu as esferificações. Ele quis aprender isso, mostrou para o Ferran e eles começaram a fazer uns testes com manga, com azeitona. Aí eles criaram um prato de purê de azeitonas que na verdade era só de esferificações. Na verdade, é só uma questão de texturas. Não tem nada de molecular. Chamar de molecular é coisa de brasileiro que não sabe o que está fazendo. Ele pegou produtos da indústria e colocou na gastronomia. Isso mudou o formato das comidas. A cozinha francesa criou as regras da cozinha, criaram pratos, nomenclaturas, a nouvelle cuisine, que são os pratos empratados. Mas eles são muito tradicionais, pararam no tempo. E não só eles. A cozinha italiana, a americana, a portuguesa. Quando o Ferran Adrià começou, quebrou a rotina. Foi ele que começou com esse negócio de cozinha de fusão. Por exemplo, misturar a cozinha italiana com a asiática. O cara é muito doido. Como eu vivi um pouco daquilo lá, eu já sou diferente dos outros daqui, entende? Por isso que o meu restaurante é diferente. Não estou dizendo que eu sou o melhor, longe disso, mas todo mundo que vem aqui vê que tem algo bem diferente.
E entre os chefs do Brasil, alguma inspiração?
Eu admiro o Claude Troigros porque ele foi um dos primeiros gringos que veio para cá e começou a colocar ingredientes brasileiros em pratos clássicos. O Claude é muito criativo. De restaurante, o melhor do Brasil é Maní, em São Paulo, por causa do Daniel Redondo. De sabor, de apresentação, nada supera o Maní. Ele foi chef do melhor restaurante do mundo disparado, que é o El Celler de Can Roca.
A tua cozinha tem algum ingrediente que não pode faltar?
No Santa Cucina eu estou testando muita coisa com o tomate agora, mas não tenho nenhum ingrediente preferido não. O que me emociona é quando algum fornecedor traz um produto top. Eu fico louco. Eu gosto de valorizar os pequenos produtores, o cara que me traz o pupunha, o cara que me traz o cogumelo Porcini da Serra, o cara que me traz um mel de uma abelha específica para provar. Eu gosto de tratar bem os ingredientes porque eles têm uma história por traz. Eu sempre começo uma nova receita pensando num produto. Mas tem vários critérios que eu uso antes de criar um prato, né? Eu preciso pensar: será que o fornecedor vai conseguir me trazer esse produto sempre? Será que esse prato vai dar lucro? Eu vou conseguir fazer esse prato 50 vezes, naquela cozinha ali, quando o restaurante estiver cheio? Aí é que a maioria dos cozinheiros se perde. Tem muitos cozinheiros no Brasil que têm pai rico, então eles brincam de ser donos de restaurante. Na verdade, acontece isso no mundo todo. Não tem como competir com esses caras. Eles não estão preocupados com dinheiro. É um hobby para o cara. Eles contratam uma equipe gigante, uma assessoria para divulgar e vender aquela ideia. Isso é injusto. Eu queria fazer sobremesa sofisticada aqui, por exemplo. Mas eu precisaria contratar duas pessoas só para isso. O que eu faço então é criar o melhor pudim que as pessoas já comeram. Uso o que eu aprendi com alguns toques de criatividade. Mas não consigo fazer algo super sofisticado como outras pessoas fazem por aí.
O que você gosta de comer em Floripa?
Só coisa simples. Pizza, porque eu não consigo fazer em casa, na Forneria Catarina. O menino lá sabe o que tá fazendo e usa os melhores ingredientes. Também gosto de comer sushi no Nipô. Camarão e ostra eu como numa barraca de madeira em Santo Antônio de Lisboa. Mas eu não saio de casa para comer ostra gratinada, por exemplo. É uma coisa horrível. Frutos do mar não combinam com queijo. Mas eles fazem porque o pessoal gosta. Eu gosto de fazer ostra na churrasqueira apenas com manteiga e às vezes um limãozinho para dar uma acidez.
Depois do Santa Cucina, há outras novidades vindo por aí?
Nos próximos dois anos eu devo participar de dois novos projetos, que não posso adiantar muito. Vou seguir com a mesma proposta sempre, de fazer comida boa, bem feita, mas o Jay Bistrô eu quero sofisticar mais, sem aumentar os preços. Quero diminuir o número de lugares, fazer uma reforma, deixar mais exclusivo. Para o verão, estou fazendo uns testes agora. Estou pensando num crème brûlée de maracujá, uma salada de quinoa. Vamos ver.