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A carta-homenagem de Laurent Suaudeau a Paul Bocuse

Laurent Suaudeau
23/01/2018 19:48
A morte do chef francês Paul Bocuse, no último fim de semana, mexeu com os profissionais e apreciadores da gastronomia de todo o mundo. Considerado o “papa” da culinária francesa, ele serviu de inspiração para diferentes cozinhas, mas um chef sentiu o falecimento dele com mais tristeza: o chef Laurent Suaudeau.
Paul Bocuse, o "papa" da gastronomia, e Laurent Suaudeau, radicado no Brasil há 40 anos.
Paul Bocuse, o "papa" da gastronomia, e Laurent Suaudeau, radicado no Brasil há 40 anos.
O francês radicado no Brasil trabalhou ao lado de Bocuse na França e foi seu indicado para trazer em terra brasileira os conceitos revolucionários da Nouvelle Cuisine, há quase 40 anos. Nesta terça (23), Suaudeau divulgou uma carta aberta em homenagem ao “chef do século”, em um tom como de quem conversa com um amigo. Confere abaixo na íntegra:

Carta aberta do chef Laurent Suaudeau ao Paul Bocuse

“Monsieur Paul,
Eu ainda me lembro do dia em que assumi minhas funções na cozinha de Collonges-au-Mont-d’Or numa manhã de março de 1977. Podia-se sentir uma energia bem militar na cozinha nesta manhã. Comecei a trabalhar sob as ordens de um chef de partie [responsável por uma determinada área da cozinha], um tanto bizarro, e entendi rapidamente que o chef Bocuse não tinha espaço para fracos.
De repente, a porta que dava para o jardim se abriu fazendo muito barulho, eu senti uma rajada de vento nas minhas costas e uma voz rouca gritou: “Bom dia, Gones” (expressão de Lyon para dizer “rapazes”) e todos os cozinheiros responderam “Bom dia Sr. Paul.”
Esta voz era a do senhor Paul Bocuse, que chegava sempre entre 9 e 10 horas, todos os cozinheiros largavam o que estavam fazendo para correr em fila e tirar as caixas de mercadoria do caminhão que chegava do mercado.
Assim se passaram dois anos e meio nas cozinhas de Collonges-au-Mont-d’Or comandadas por um chef excepcional chamado Roger Jaloux; ele tinha 36 anos e era o chef das cozinhas de Paul Bocuse e acabou se tornando um amigo.
Eu me tornei em pouco tempo chef de partie da brigada de 12 cozinheiros. Era uma grande responsabilidade, lembrando que nesta época Sr. Paul viajava muito e consequentemente existia uma grande curiosidade da parte das mídias e televisões do mundo inteiro. Isso nos obrigava muitas vezes a cozinhar ao meio às câmeras, fotógrafos e jornalistas, que invadiam a cozinha nos horários mais inapropriados e nós tínhamos que estar à disposição.
Eu vi cozinheiros não aguentarem mais que 24 horas, que recusaram a rotina que ia das 7 da manhã às 15 horas e das 17 às 23 horas. Era preciso correr para tirar a mercadoria do caminhão, a comida dos cachorros tinha que estar pronta às 11 horas, o almoço e o jantar da Sra. Raymonde, esposa do Sr. Paul, da Mamie (mãe do Sr. Paul) e dele mesmo às 11h30 e às 18h30 em ponto. Tudo funcionava como um relógio sem discussão, avental azul para o mise-en-place, avental branco e toque para o serviço no almoço e no jantar, tudo isso num grande silêncio. A gente só ouvia o barulho de panelas e os “sim chef” e “não chef”. Uma folga por semana, nunca no mesmo dia, a não ser para os casados.
Um dia, à mesa (somente o chef, o sous-chef e os chefs de partie tinham direito de se sentar nela para almoçar), eu contei a Roger Jaloux a vontade que eu tinha de partir para conhecer o mundo. Sr. Paul me chamou e me ofereceu a possibilidade de ir para Los Angeles no Restaurante Hermitage, considerado o melhor restaurante da California da época. Feliz com esta proposta, corri para avisar meus pais e um tempo depois, Sr. Paul me chamou para dizer que eu tinha que esquecer este destino pois o proprietário tinha acabado de falecer. Triste, eu pensei que não partiria nunca mais.
Dois meses depois, eu e um colega fomos chamados no pátio do restaurante, onde nos esperavam Roger Jaloux e Sr. Paul. Neste dia, foi feita a seguinte pergunta: Qual de nós dois devia partir para o Rio no Restaurante Saint Honoré Paul Bocuse do Hotel Meridien? O chef Roger Jaloux me apontou com o dedo e disse nesses termos “Para nós Sr. Paul, o Laurent.”
Foi assim que eu vim ao Brasil sem conhecer nada deste país, com um contrato no bolso, que tinha sido assinado na sede do Meridien em Paris. Um contrato que o Sr. Paul não gostou e na minha frente, furioso, ligou para o diretor de RH da cadeia hoteleira e disse com firmeza: “Quando Bocuse manda um cara da equipe dele, é porque ele é bom e deve-se pagar por um bom.” E dessa forma, ele aumentou o meu salário com um simples telefonema que não durou nem dois minutos. Eu faço questão de contar essa anedota, pois é preciso que se saiba que o Sr. Paul era um chef exigente e até duro às vezes; ele podia ser ao mesmo tempo um homem generoso e implacável com aqueles que não eram do seu agrado.
Ele me chamou no pátio do restaurante quando ele soube que o meu pai tinha tido um AVC aos 46 anos que o deixou completamente paralisado. Ele me disse que se eu quisesse ir embora, eu podia contar com ele, que ele ajudaria a minha mãe.
Antes de ir para o Rio, eu o acompanhei a Bogotá e ainda hesitava sobre a vinda para o Rio, mas ele insistiu: “Você vai ver, é diferente, o céu é azul, as praias são bonitas e as mulheres maravilhosas.” Realmente, quando eu cheguei o céu era azul, as praias maravilhosas e as mulheres mais ainda. Mas eu tinha uma missão a ser cumprida e de preferência o mais rápido possível como sous-chef, pois já existia um chef.
A princípio, minha intenção não era de ficar muito tempo, eu o avisei por telex. Ele me pediu para ser paciente. Sr. Paul nos visitava 4 vezes por ano; ele me pediu numa dessas visitas se eu não queria assumir o restaurante, me garantindo que ele defenderia a minha posição e que eu tinha campo livre para executar o trabalho da melhor forma.
Em menos de quatro anos, o restaurante foi reconhecido como número um do Brasil e como a mesa mais sofisticada da rede Meridien.
Quando ele vinha para o Brasil, ele trazia caixas de brinquedos, livros e roupas que ele fazia questão de dar de presente para as crianças dos meus cozinheiros (eles vinham, em uma grande maioria, do Nordeste e moravam nas favelas ou subúrbios do Rio). Fomos de kombi, com o motorista do hotel, visitar as famílias dos meus cozinheiros, com as caixas de presentes, na Rocinha, Belfort Roxo e Vidigal. Numa dessas vezes, ele pegou um galo e gritou: “Chama todo mundo! Eu vou hipnotizar o galo.” E 20 pessoas o observaram colocar o galo de barriga para cima e imobilizá-lo.
Eu o vi se sentar na rua ao lado de um senhor, que na época fabricava cadeiras de palha e dizer: “Você viu o gesto dele?” Sempre como a sua máquina fotográfica no bolso para registrar uma situação (estávamos longe de saber que um dia existiriam os smartphones).
Um dia, na mesa da cozinha, no serviço do almoço, ele me intimou: “Eu vou te mandar para o Japão, para Tokyo.
– Ok Sr. Paul, e eu serei o melhor, respondi.
Neste momento ele se virou e me cortou:
– O melhor do quê seu imbecil? Isso não existe. Faça sempre o seu melhor mas nunca diga que você é ou será o melhor!
Depois ele me propôs de ir para Nova York para ser chef do Restaurante Le Cirque aos 27 anos. Acompanhado da Sissi, minha futura esposa, fomos passar uma semana para conhecer o patrão em Nova York e poder discutir dos detalhes do meu contrato e depois seguiríamos para Collonges-au-Mont d’Or para conversar com o Sr. Paul antes de voltar para o Rio.
Neste dia, um dia glacial do mês de janeiro, ele estava me esperando no restaurante, pediu que eu me sentasse em uma mesa de frente para a cozinha, na qual tinha uma garrafa de champanhe, ele a abriu, me serviu um copo e disse: “Você está consciente que eu estou te oferecendo o tapete vermelho para a sua carreira?
– Estou, Sr. Paul, respondi.
E no entanto, todos sabem o que aconteceu, eu fiquei no Brasil.
Sr. Paul foi um homem visionário, era consciente de como a imagem pessoal de um cozinheiro podia ajudar no progresso da cozinha mundial, sempre buscando o equilíbrio entre o interesse pessoal e o que era do interesse do coletivo, da profissão.
Ele foi e será para sempre o único chef que entendeu que cada um de nós, onde quer que estejamos, deve valorizar os produtos, nunca deixar de compartilhar os seus conhecimentos com os jovens, com muita humildade e respeito, e que não importa a nacionalidade, a cor e a religião.
Eu posso garantir que o Sr. Paul nunca foi xenófobo; ele sempre defendeu o seu patrimônio regional e uma cozinha regional de onde quer que fosse, da França ou de qualquer outro lugar do mundo. O produto, ele dizia sempre, o produto. Os pequenos produtores? Ele sempre os defendeu na sua cozinha e queria que essa fosse uma verdade em todas as cozinhas do mundo. Ele abriu sua cozinha para milhares de estagiários do mundo inteiro; eu sou testemunha. Irlandês, alemão, brasileiro, argentino, espanhol, indiano, americano, japonês, inglês, colombiano, marroquino, congolês, numa época em que ainda não se falava em mundialização.
Tudo isso deve ter levado ele a criar o Bocuse d’Or [um dos maiores prêmios de gastronomia do mundo]. Ele acabou sendo o primeiro chef a abrir uma escola em seu nome, o Instituto Paul Bocuse.
Eu tive o privilégio de trabalhar com ele, para ele, e fico feliz de poder compartilhar essas experiências dos anos em que trabalhei para a Maison Bocuse.
Eu espero que nessas poucas linhas, os cozinheiros brasileiros entenderão o quanto o Sr. Paul foi o ponto de partida da revolução e evolução da cozinha no mundo e que o Brasil faz parte desta história. E que a cozinha representa num universo cultural e que cada vez mais, os cozinheiros deverão valorizar os produtores de suas regiões; uma cozinha expressa e executada com a disciplina do gesto e tendo compromisso com o coletivo.
Certamente, era o que mais o entusiasmava, de participar e poder ver como cada nação podia através da cozinha, fortalecer um diálogo de respeito ao outro e de paz.
Au revoir M. Paul (Adeus Sr. Paul)”.
Laurent Suaudeau
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