Bom Gourmet
Conheça a trajetória da empresária Ieda Godoy, que faz história na noite curitibana
A força da noite: a empresária Ieda Godoy já encabeçou sete empreendimentos da noite curitibana. Arquivo Pessoal
É uma segunda-feira de fevereiro de 2024, 14h. Cerca de dez clientes finalizam seu almoço no salão do Mafalda. Detrás do balcão, usando um vestido leve branco e azul, máscara preta e óculos de grau, Ieda Godoy sorri com os olhos verdes para cumprimentar quem chega. Faz um mês que o restaurante reabriu após um ano em reforma. O incêndio que o destruiu aconteceu em outra segunda-feira, dia 10 de dezembro de 2022. Uma pane elétrica em uma das geladeiras foi o estopim para que toda a estrutura começasse a queimar.
Naquela noite, Ieda estava saindo de um evento. Tinha acabado de entabular uma conversa sobre como o ano de 2022 havia sido de reconstrução, e que o Mafalda estava fechando no azul novamente. Foi quando recebeu mensagens avisando que havia fogo na quadra do Mafalda. "Eu estava dirigindo na Avenida Sete de Setembro e entrei na Mariano Torres. Logo que virei, vi a fuligem no ar, aquele cheiro de incêndio. Deixei o carro na primeira vaga que encontrei e corri até o Mafalda", relembra Ieda Godoy. Os bombeiros já estavam em ação, e ela só pôde entrar no imóvel no dia seguinte. "Foi aterrorizante".
Os infortúnios superados naquele ano não eram apenas decorrentes da pandemia. Em outubro de 2021, quatro homens arrombaram a porta do restaurante e levaram tudo o que puderam carregar, desde eletrodomésticos até bebidas e comida: oito linguiças Blumenau, uma peça de filé mignon e 12 porções de pierogi. A campanha online para arrecadar R$ 20 mil e comprar novos equipamentos superou a meta, com 220 pessoas doando mais de R$ 26 mil. O Mafalda voltou a operar em duas semanas. "Em todos os momentos, tivemos apoio do público: na pandemia, as pessoas pedindo delivery do Mafalda e do Mãe; após o saque, as contribuições na vaquinha; e depois do incêndio, novamente, todo mundo doando e vindo almoçar logo que reabriu", diz. "Conquistei o respeito da cidade, e vejo nisso um valor gigante".
Ieda Godoy e a Resiliência de mãe
O restaurante Mafalda completa 23 anos em 2024 e é o mais longevo da prolífica criação de Ieda. No total, ela encabeçou sete empreendimentos, dos quais três estão abertos atualmente: Mafalda, Wonka e Dizzy Café Concerto – Ieda deixou a sociedade do último em 2019, quando abriu o Mãe, bistrô com cozinha de inspiração ibérica e decoração que homenageava o cineasta espanhol Pedro Almodóvar, em tons de vermelho, com neon, flores e pôsteres. "A ideia era trazer elegância para uma rua maldita do Centro", define Ieda. O restaurante funcionou por três anos na Rua Treze de Maio, próximo ao Largo da Ordem.
A vida do Mãe foi atribulada. A epidemia de Covid-19 chegou ao Brasil menos de seis meses após a abertura da casa. Ieda Godoy, em 2020 à frente do Mafalda e Mãe, encabeçou o movimento "Fechados pela Vida", uma organização social de comerciantes de Curitiba que pressionou as autoridades pelo lockdown em períodos críticos, vacina e auxílio financeiro para cidadãos e pequenos negócios. "Foi minha época mais ‘milituda’. A cada semana tinha um novo decreto para seguir, e a gente correndo atrás de fazer tudo de acordo", relembra. O público aderiu ao delivery – havia clientes que pediam almoço todos os dias para apoiar o Mafalda e o Mãe. "Foi bonito ver como o curitibano apoia e gosta dos restaurantes que ele frequenta."
Após o período crítico da pandemia, reerguer um pequeno negócio foi uma tarefa difícil mesmo para quem já tinha experiência. Os restaurantes estavam começando a ganhar tração, ainda que lentamente, quando a outra sócia do Mãe, Ane Adade, mudou-se de cidade. Era janeiro de 2022, e o restaurante completava três anos; a maior parte deles existindo como delivery. Ieda decidiu que não tocaria sozinha o Mãe, mas que manteria sua memória. O letreiro neon em letra cursiva com o nome do estabelecimento passou a decorar uma das paredes do Mafalda; um lembrete da resiliência que toda figura materna carrega.
No mesmo mês, ela reabriu o Wonka, uma cria querida que havia funcionado de 2005 a 2016 com múltiplas personalidades – às terças, o palquinho do porão da casa da Rua Trajano Reis recebia poetas e escritores declamando seus textos. Nas quartas, era música brasileira. A quinta era do jazz, sexta da música eletrônica, e sábado do rock. "O Wonka foi um relacionamento que não tinha terminado. A gente precisava voltar", brinca Ieda. "E voltou com tudo, nem parecia que tínhamos passado seis anos fechados", comemora. A casa noturna voltou com programação similar à de outrora.
Do lado de dentro do balcão
Nos 33 anos do lado de dentro do balcão, Ieda deu cara, coragem e identidade à noite curitibana. Tudo começou sem querer, como muitas histórias de amor. Era final de 1991 e o trio de amigos Marcelo Borges, Angela Dal Molin e Leônidas Rodrigues abriam O Poeta Maldito na Alameda Cabral. Ieda, formada no Magistério em Prudentópolis, então com 24 anos e cursando Artes Cênicas, trabalhava como professora para crianças. Eram férias escolares, e ela passava as noites no bar atendendo, ouvindo música, bebendo e conversando com os amigos. O período de recesso acabou e ela não voltou nem para a faculdade, nem para a escola. Seguiu no bar.
O Poeta Maldito mudou-se quatro meses depois para a Rua Desembargador Clotário Portugal, onde ganhou uma placa entalhada em madeira com a figura de um corvo, animal símbolo do poeta Edgar Allan Poe. "O bar durou mais oito meses e a placa feita pelo Marcelo Weber Macedo menos ainda. Roubaram em poucas semanas porque era linda", recorda Ieda. A troca de endereço teve também uma troca de sócios: Marcelo Borges saiu e Ieda Godoy entrou. Com o encerramento precoce do bar por reclamações da vizinhança (e falta de alvará), Ieda e os sócios agitaram um novo point. Dessa vez, uma casa da Rua Vicente Machado, no piso superior de um boteco de família chinesa. A calçada em frente ao local lotava, ao melhor estilo “prainha da Vicente”, but make it punk.
O nome soa almodovariano, mas foi dado ao acaso: Dolores Nervosa é uma combinação aleatória de um nome de mulher e um adjetivo. Em 1992, o Dolores abriu as portas e foi terreno fértil para a formação da cena underground noventista de Curitiba. Em seus dois meteóricos anos, recebeu shows, discotecagem – "Foi o primeiro bar a ter um DJ tocando sem ver o público porque o equipamento de som ficava em outro cômodo" – e performances; muitas da própria Ieda. Quem parava por lá para tomar um caldinho de feijão com torresmo em meio às paredes sem reboco podia ter cruzado com José Wilker ou Wander Wildner na transmutação do Dolores, quando o bar mudou o nome para Dromedário.
O nome do terceiro bar também era uma referência cult, batizado por causa de uma música dos Titãs, "O Camelo e o Dromedário", do álbum Õ Blesq Blom, de 1989. O ano era 1994 e Ieda fazia dupla jornada. Durante o dia, trabalhava em uma videolocadora; à noite, atendia no Dromedário. "Eu vendia muito na videolocadora porque assistia aos filmes, conhecia as histórias, falava pra caramba, discordava das resenhas publicadas. E mudava as fitas de lugar para dar destaque ao que eu achava que tinha mais apelo. Em três meses, me colocaram como gerente", conta. A experiência de funcionária diurna durou até 1996, e foi o que mais lhe ensinou sobre administração dos negócios. "Sem dúvida, tudo o que fiz depois foi influenciado por essa experiência", relembra com carinho.
Ieda engravidou do seu primeiro filho naquele ano. Atendeu no balcão do Dromedário até a véspera do parto, e resguardou-se por 40 dias. "No 41º dia estava no bar de novo". Ieda intercalava noites em casa e no bar com seu marido à época, Adriano Kussaba, hoje um grande amigo. Em 2000, grávidos do segundo filho, Ieda precisava de menos madrugadas em claro. "A noite me fez destemida e meus filhos me fortaleceram", resume. Aberto enquanto gestava Arthur, o Mafalda foi a resposta que Ieda encontrou para "acalmar". "Eu queria mudar o rumo, ter um lugar mais voltado pra comfort food", diz.
O Dromedário foi encerrado e uma breve fase diurna se iniciava. O Mafalda serve almoço desde sua abertura, com petiscos e pratos à noite – a partir deste mês, também passa a funcionar como cafeteria no período da tarde. Finalizar o expediente a uma da manhã é considerado cedo por Ieda Godoy, acostumada a deitar depois que o sol raiou. A calmaria durou alguns anos: em 2005, ela abriu o Wonka, e Ieda voltou ao duplo expediente: ao meio-dia, na balança e caixa do Mafalda, e à meia-noite, de olho na pista. "Gosto muito do dia, mas amo a noite", resume.
Isolar e misturar
Ieda Godoy completou 57 anos em março de 2024. "Tenho uma energia sobrenatural. Nunca fui sedentária, nunca me considerei velha. Não tenho dor no corpo, meu espírito é forte", enumera. Há oito anos praticando yoga seriamente, Ieda sempre esteve em movimento: fez natação, corrida, academia. Come e dorme pouco naturalmente, e seu pique foi capaz de dar conta de três bares ao mesmo tempo entre 2014 e 2016: Wonka, Dizzy e Mafalda.
"Meus negócios sempre dependeram muito da minha cara", analisa, "e eu divido minha presença em todos eles". Ela entende o bar como um espaço público e que a mistura de público é natural – já o desrespeito, não. Em três décadas, apartou incontáveis brigas, expulsou gente, deu bronca, barrou clientes quando preciso. "Não é porque é um espaço público que eu vou receber quem não entende como funciona aqui dentro", salienta. "A cena foi ficando mais pulverizada e misturada. Antes era mais nichado. Acho isso muito bacana, porque o segredo da democracia é a heterogeneidade e o respeito à diferença", completa Ieda Godoy.
A energia exigida para ser frontwoman é de alta voltagem. Ela se reequilibra em movimento, entre misturar-se e isolar-se. "Gosto de criar e sempre soube que caminho percorrer por ouvir minha intuição. Preciso estar em contato com todos, mas também preciso do meu tempo isolada". Em 2019, durante um retiro budista, Ieda teve um lampejo: tornar o buffet do Mafalda inteiro vegetariano. "Eu estava comendo tão bem sem carne, eu sabia que funcionaria. Nosso buffet é pequeno e barato. Almoço em regiões universitária e central tem de ser barato, porque é uma necessidade da rotina", defende. Os estudantes têm desconto no buffet, uma das maneiras de Ieda promover o que acredita, assim como dar espaço a artistas independentes ou novatos no Wonka.
Na semana anterior à reabertura do Mafalda em 2024, Ieda Godoy passou quatro dias em jejum e meditação, dormindo ao relento. "Foi fortalecedor. Sem dúvida, uma das experiências mais profundas da minha vida", define. Naquele almoço de segunda, a playlist do Mafalda tocou "Marinheiro Só", de Clementina de Jesus. A sambista indaga: "Quem te ensinou a nadar? Foi o tombo do navio ou foi o balanço do mar?". No caso de Ieda, dá pra dizer que foram as duas coisas.
Serviço:
Mafalda Café, Bar e Bistrô. Rua Tibagi, 75, Centro. Abre para almoço de segunda a sexta das 11h30 às 14h e aos sábados das 12h às 15h. Cafeteria de segunda a sábado das 14h às 19h. À noite, de quarta a sexta das 19h à 1h e aos domingos das 19h a 0h. No almoço, há desconto para estudantes.
Wonka Bar. Rua Trajano Reis, 326, São Francisco. Abre de terça a quinta a partir das 20h e às sextas e sábados a partir das 21h.
Dizzy Café Concerto. R. Treze de Maio, 894, São Francisco. Abre de terça a sábado a partir das 19h.
Dizzy Café Concerto. R. Treze de Maio, 894, São Francisco. Abre de terça a sábado a partir das 19h.