Bom Gourmet
Para desbravar a culinária brasileira: 2ª edição de guia conta histórias de pratos e ingredientes
O tradicional barreado, de Morretes. Priscilla Fiedler
Quanto não sabemos das nossas raízes, ingredientes e tradições culinárias? Muito, com certeza. Eu desconfiava disso e bastou folhear rapidamente a nova edição do livro Culinária brasileira, muito prazer: tradições, ingredientes e 200 receitas de grandes profissionais do país (Editora Senac Rio) para concluir: não sei nada mesmo. Tratei de mergulhar no assunto e descobrir como Roberta Malta Saldanha nos ajuda a diminuir esse hiato.
“Uma verdadeira geografia da alimentação no Brasil”, definiu a presidente do Ludovicus – o Instituto Câmara Cascudo –, Daliana Cascudo Roberti Leite. A obra traz informações sobre ingredientes típicos de cada região, o passo a passo de receitas tradicionais e textos sobre a cultura culinária do povo local – incluindo os povos originários – e dos imigrantes.
Histórias divertidas e curiosidades de muitos dos ingredientes citados vêm de brinde e são saborosas. Sem dúvida, todos que se interessam por gastronomia devem ter um exemplar em casa para consultar sempre. E como surgiu a ideia do livro? Perguntei para a autora. Descobri que a paulistana Roberta morou em várias cidades e começou a despertar para esse universo acompanhando a avó materna – exímia cozinheira pernambucana – na preparação dos pratos servidos para a família e depois mergulhando no assunto definitivamente com as inúmeras viagens que a adolescente curiosa começou a fazer pelo país.
“Sempre fui apaixonada pela história da culinária brasileira desde pequena. Eram tantos ingredientes e pratos que eu nunca tinha ouvido falar”. Lembra inclusive de passagens engraçadas como quando um primo ofereceu um cachimbo, o que causou estranheza até descobrir que não era tabaco e sim uma aguardente de mel e frutas.
Em 2000, começou a carreira como escritora dedicada à gastronomia e não parou mais – tem 14 livros publicados, todos contemplando as histórias da gastronomia e dos vinhos brasileiros, inclusive com um prêmio Jabuti no currículo. Antes disso, a jornalista fez carreira na imprensa escrita e na organização de eventos. Responsável por criar, em 1995, o evento Boa Mesa teve a oportunidade de conhecer inúmeros profissionais da cozinha, o que a aproximou mais ainda da gastronomia.
Com a venda da marca e a ideia antiga de escarafunchar a riqueza culinária do nosso país na cabeça, tratou de desenhar um projeto e buscar a aprovação da editora. Logo iniciou as pesquisas e não parou mais. Em mais de dez anos, contou com a companhia de sua irmã, Monica Prota e dos especialistas Denise Rohnelt Araújo e André Vasconcelos, todos fundamentais no trabalho. “Nosso país é gigante, repleto de ingredientes que não conhecemos, de pratos que nunca saboreamos e outros que não são mais encontrados”, escreveu Denise, que é jornalista, pesquisadora, chef de cozinheira, especialista em culinária brasileira e amazônica, na apresentação do livro que considera, depois do História da Alimentação no Brasil, do historiador Luís Câmara Cascudo, um marco nas publicações sobre a alimentação brasileira. Denise foi consultora da culinária do Norte e ajudou a organizar as receitas das duas edições, além de ter uma de sua autoria. Na segunda edição, teve a contribuição do André Vasconcelos, que é do Sul.
Edições diferentes
A diferença entre os dois livros, lançados com um intervalo de cinco anos, é que foi possível avançar na pesquisa e contar com a colaboração de mais chefs. No primeiro livro, foram 170, neste, são 205. 65% dos nomes da primeira edição foram mantidos, mas foi aberto espaço para novos profissionais talentosos. Entre eles, estão: Claudia Krauspenhar, Eva dos Santos, Ivan Lopes e Manu Buffara representando o Paraná. Todas as receitas publicadas são diferentes.
“Nenhuma se repete a não ser duas com características específicas de tipicidade, que não poderiam ficar de fora”, explica Roberta. Além disso, Denise contou que a intenção foi também apresentar receitas mais fáceis de serem reproduzidas. Outro diferencial na segunda edição, explica Roberta, é a participação dos povos originários. São seis etnias contempladas – um começo, porque apenas a culinária indígena renderia outro livro, extremamente interessante. “São mais de 800 mil pessoas, mais de 300 etnias. Ter conseguido colocar no livro seis não é nada, mas é um começo. Espero ter a oportunidade de, em outros trabalhos, abrir espaço para que eles contem, mostrem e nos ensinem”, afirma. Pista para uma terceira edição, desconfio. “O Brasil tem muito ainda a ser descoberto”. Acredito também.
Confira um rápido resumo da obra
Norte
Abro as páginas sobre a Região Norte: sou inundada por uma avalanche de ingredientes desconhecidos. Sinto-me perdida entre muricis, miritis, camapus, biribás. “São mais de 180 espécies de frutas comestíveis, 2.500 tipos de árvores e 40 mil espécies de plantas”, além das mais de 100 variedades de peixes, a maioria desconhecida para quem é de outra região. Dá para imaginar o que isso representa. Quando entra a relação das bebidas, temos certeza de que não conhecemos o Brasil. Tem desde vinho extraído da mandioca, Tapicuri e Manioara, até as famosas garrafadas, a mistura de ervas, frutos, flores, cascas e sementes.
Nordeste
Sou lembrada que quatro biomas fazem parte da Região Nordeste: Amazônia; Caatinga; Cerrado; e Mata Atlântica. É o suficiente para imaginarmos a riqueza da mesa nos estados que fazem parte dela. Receberam influências indígenas, portuguesas, árabes e negras. Penso nisso e junta água na boca. Vejo uma procissão de cajus maduros, lagostas, um prato de baião-de-dois, carne de sol e as famosas fritadas, galinhadas, pitus, o bobó de camarão, manteiga de garrafa e o bolo de rolo. E a lista não termina: esqueci do acarajé; do queijo de coalho; das farofas; paçocas e feijões e do vatapá. Agora nunca ouvi falar do amendoim cozido verde, do manauê, ou do saroio. Nem vou explicar. É mesmo um Brasil desconhecido.
Centro-oeste
Não tem como falar do Centro-Oeste sem citar os peixes. São destaque no capítulo. Pacus, pintados, dourados, matrinxãs, piranhas e muitos mais dão fama à região, nos lembra a autora. Na base do cardápio, ainda estão a cauda do jacaré, as carnes de caça vindas de criadouros regulamentados pelo Ibama e a mandioca, que marca a influência indígena. Ainda receberam a influência dos japoneses que trabalharam na construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, dos paraguaios, bolivianos, argentinos – e, claro, de brasileiros de outras regiões. Basta lembrar do churrasco pantaneiro e do tereré, herança dos gaúchos.
Sudeste
Na região Sudeste, a influência dos povos originários e portugueses estão lado a lado. O uso de panela de barro, o caranguejo, a farinha de mandioca, o óleo de urucum comprovam, assim como o uso do azeite de oliva, da pimenta-do-reino, do coentro e do bacalhau. Em algumas regiões, como São Paulo, há a mistura das influências de outros imigrantes, mas há também a tradição caipira, “da comida simples” e utilização de ingredientes como milho e porco. O livro ainda conta a origem de diversas receitas, como a origem da rapadura e da farinha de mandioca, e a história de pratos clássicos como o arroz biro-biro, angu de escravo, e o afogado servido na Festa do Divino Espírito Santo da cidade de São Luís do Paraitinga.
Sul
Como boa paranaense, começo pelo barreado. É o símbolo do Paraná. A única dúvida é se foi criado no Litoral (disputado entre as cidades de Morretes e Antonina) durante o Entrudo, festa precursora do carnaval, ou pelos tropeiros. Os poloneses, sabemos, são presença forte, principalmente em Curitiba, por isso pierogi, bigos e borscht estão nas mesas da cidade. Também é forte a presença indígena e de açorianos, italianos e austríacos, mais história. O pinhão é riqueza abundante no Sul e com ele várias receitas aparecem. “O chimarrão foi um presente do povo guarani”, ressalta Roberta, lembrando que os indígenas são os responsáveis também pelo “legado do churrasco na vala – na grelha, é chamado de ‘assado’”.