Bom Gourmet

O sagrado churrasco de quinta-feira na Caverna do Dragão

A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa, com André Bezerra e convidados
25/09/2025 14:14
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Por Adriano Rattmann*
Quinta-feira tem futebol, mas o apito final é só o aviso de que começa a partida que realmente importa: o churrasco da Caverna do Dragão. Assim batizaram minha churrasqueira porque, como no desenho, ninguém consegue sair na hora planejada. A bola para de rolar no campo e, em poucos minutos, minha casa já é tomada por fumaça, risadas e música.
Depois do jogo, sigo direto para a churrasqueira, onde o fogo me espera. Artilheiro da pelada e, na quinta, artilheiro também da grelha, cuido do fogo, da faca e do tempo. O braseiro começa com carvão e um guardanapo embebido em óleo de cozinha usado — meu jeito preferido de acender o fogo sem álcool. O papel absorve o óleo e queima devagar, criando a chama ideal para a lenha que entra em seguida e dá à carne um sabor levemente defumado, irresistível. O estilo é simples e direto: assa, vai pra tábua, corta-se em tiras finas e cada um se serve com os dedos, como se o churrasco fosse um grande aperitivo em pequenos lances. Não há pratos nem talheres — só a dança da carne, da fumaça e do sal de parrilla, que só entra em campo depois de assada, para manter a suculência.
A primeira jogada é sempre a linguiça, estalando e pingando gordura que alimenta o fogo. Em seguida vêm o porquinho e o frango, dourando devagar, preparando o terreno para as estrelas da noite: fraldinha, contrafilé, alcatra ou o corte que a promoção da semana ditar. Em aniversários, a escalação é de gala: picanha, carneiro ou uma costela que o Ramão traz de Garopaba e deixa seis horas no fogo. O desafio é agradar todos os paladares: tem quem queira a carne quase crua, outros pedem ao ponto, alguns exigem bem passada. É preciso ouvir cada pedido, girar cada peça na hora certa, cortar e servir no instante exato. É esse clima — o calor do fogo e a visão da churrasqueira decorada com troféus, medalhas e camisas de futebol das décadas de 70, 80, 90 e 2000 - sendo uma delas autografada pelo próprio Pelé — que me prende à grelha e faz cada rodada de carne parecer jogo de final.
Enquanto a carne principal não chega à tábua, a fome da galera já pede socorro. É aí que a maionese do mestre Ademar vira estrela antecipada: cremosa, cheia de segredos e servida com pão francês, ela desaparece em minutos, antes mesmo da primeira fatia de carne.
Para harmonizar com essa festa, a cerveja Bendicta gelada é o carro-chefe — tem até uma geladeira própria, sempre abastecida. Mas há lugar para outras preferências: o Noldin inventa drinks com uísque, vodka, rum e o que mais encontrar, misturando destilados com maracujá, café, canela, limão, laranja e outras combinações inesperadas. O JC prefere o seu Campari, jurando que a bebida combina com qualquer corte.
Entre um corte e outro, o tempero vem dos amigos. Trovão, meu parceiro desde a faculdade, é o presidente da pelada e, no gramado, reclama de cada passe errado, de cada chute torto. Mas basta chegar à Caverna do Dragão para se transformar: não reclama de nada e ainda comanda a música com seu pandeiro, garantindo o ritmo da noite. O Tinho é o velocista da bandeja, servindo como se ainda estivesse em campo. E o Romeu, sósia do técnico Odair Hellmann, bate o compasso com uma sacola plástica que parece instrumento de percussão. Entre um “solo” e outro, solta suas piadas de quinta série, repetindo a preferida: “Mais nervoso que peru em véspera de Natal.”
Quando o relógio passa da meia-noite, a música cresce: Noldin assume o cajon, eu me arrisco no chocalho e o ar defumado se mistura ao riso e ao som, enquanto o braseiro segue vivo.
A madrugada avança nesse vai e vem de cortes suculentos, piadas e aromas que grudam na roupa. Os mais prudentes, como o Juarez, se despedem cedo: às sete da manhã ele já tem paciente, muitos deles da própria pelada. E o pessoal dá trabalho: já não somos os mesmos meninos que jogavam desde os tempos da faculdade, e as dores pós-jogo viram consultas improvisadas ali mesmo, na Caverna do Dragão, enquanto a resenha ainda rola. Outros ficam até o primeiro raio de sol, quando o último braseiro se apaga. Às vezes cruzam com meus filhos saindo cedo para a escola, o cheiro defumado ainda no ar.
A sexta-feira chega exigente, com o corpo sentindo as horas sem dormir. Mas basta lembrar da noite — das risadas, da carne suculenta, da roda de samba — para a energia renascer devagar. É como se a memória do churrasco recarregasse as forças para atravessar o dia até o pôr do sol, quando o fim de semana, enfim, começa.
Domar o fogo, escolher o ponto certo, virar cada corte na hora exata: essa é a verdadeira arte do assador. Cada fatia que sai da grelha prova que o fogo tem poder de transformar carne em festa, amigos em família e a noite em algo que ninguém quer ver acabar.
*ADRIANO RATTMANN é jornalista, autor da biografia do ex-técnico Caio Jr e produtor do filme Alex Câmera 10. Sócio da Ace Comunicação.