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Não adianta inventar moda: receita da carne de onça é simples, mas deve ser seguida à risca

Fernando Henrique de Oliveira
Fernando Henrique de Oliveira
03/06/2025 17:12
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Carne crua, azeite, cebola e cebolinha: a receita da carne de onça não é mais do que simples. Crédito: Divulgação/Quitutto GastroPub.

No último dia 20 de maio, a tradicional carne de onça ganhou um reconhecimento importante: agora, ela leva oficialmente o nome “Carne de Onça de Curitiba”, com o selo de Indicação de Procedência (IP), concedido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Isso significa que o prato típico, além de famoso, passa a ter seu valor de origem protegido e reconhecido em todo o país.
A conquista da 18ª Indicação Geográfica (IG) do Paraná reforça o que a cidade já havia declarado em 2016, quando a Lei Municipal nº 14.928 reconheceu a carne de onça como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial de Curitiba. Com o selo nacional e o título municipal, o prato se firma como parte essencial da identidade curitibana — um orgulho local que mistura história, cultura e sabor único.
A IG garante que só pode ser chamada de Carne de Onça de Curitiba a receita feita com carne bovina crua (patinho ou alcatra), broa de centeio, cebola branca e cebolinha verde, temperados com azeite extravirgem, sal e pimenta-do-reino a gosto. A receita oficial ainda admite o acompanhamento de mostarda escura ou amarela, molho de pimenta e azeite — para além daquele utilizado na preparação do prato. Fora disso, nada feito. Alho, conhaque, alcaparras ou qualquer outro ingrediente fora da lista descaracterizam a iguaria.
Curiosamente, a carne de onça de Curitiba é a primeira Indicação Geográfica do Brasil a conter outro produto com IG na sua composição: a broa de centeio, também certificada como produto típico da capital. Sem ela, a carne de onça perde sua identidade.

Carne de onça: entre o “bafo” e a tradição

E por que "carne de onça" se não tem onça alguma na receita? O nome irreverente pode ter surgido da fama de causar um certo "bafo de onça" — um efeito, digamos, "colateral" da cebola crua. Mas há quem diga que a origem tem mais a ver com bom humor do que com… zoologia.
A história da carne de onça remonta à década de 1940. Diz a tradição que Cristiano Schmidt, então presidente do Britânia, time que mais tarde se fundiria a outros para formar o atual Paraná Clube, servia o prato em seu bar, a Toca do Tatu. O estabelecimento ficava na Rua Marechal Deodoro, esquina com a XV de Novembro. Após as vitórias do time, Schmidt oferecia aos torcedores a carne crua sobre broa, com cebola branca e cebolinha picadas. Na década seguinte, o prato começou a ganhar outros espaços da cidade, como no Clube Concórdia, da família Garmatter, conhecida pelo frigorífico de mesmo nome.
Há quem diga, no entanto, que a carne de onça é uma adaptação brasileira do hackepeter, também conhecido como "mett", uma receita da culinária alemã. Tradicionalmente feito com carne suína crua, alho, cebola e condimentos como mostarda, conhaque, ketchup e molho inglês, o hackepeter é servido sobre pão preto ou torradas. No Brasil, especialmente em regiões com forte imigração alemã, a receita ganhou versões com carne bovina.

A base da carne de onça tradicional

Para Rafael Kula, chef e proprietário do Quitutto GastroBar, a carne de onça exige rigor. “A base é carne crua de altíssima qualidade. Somente patinho ou alcatra podem ser usados, sem gordura e sem nervos, e a carne deve ser sempre fresca e resfriada, nunca congelada”, explica. Isso garante tanto a coloração viva quanto a segurança alimentar.
No Quitutto, a carne de onça é preparada exclusivamente com patinho — embora, de novo, a receita oficial também permitir a alcatra. Segundo Kula, a carne oferece características ideais para o prato — como baixo teor de gordura, fácil limpeza, e sabor mais leve. "Ao contrário de cortes, que escurecem mais rápido, o patinho mantém a coloração e o frescor por mais tempo, sendo mais estável e agradável ao paladar”, afirma.
O produto é embalado a vácuo e mantido refrigerado a 4 °C, o que garante até dois dias de conservação sem perda de frescor. A carne chega fresca duas vezes por semana e a preparação acontece em até 24 horas após o abate.
Esse cuidado está em consonância com o que determina o Caderno de Especificações Técnicas da IP Carne de Onça, elaborado pela Associação Amigos da Onça e homologado pelo INPI. O documento é claro: a carne deve ser patinho ou alcatra, sem gordura ou nervos, moída com granulosidade pequena (nunca pastosa), cor vermelha viva e obtida de fornecedores que atendam à legislação sanitária vigente. A carne deve ser usada no mesmo dia da compra ou até dois dias depois, se refrigerada corretamente. Se embalada a vácuo, pode ser utilizada em até cinco dias.
A moagem pode ser feita no moedor ou na ponta da faca, mas jamais deve virar uma pasta. A cebola precisa ser branca, cortada em cubos, rodelas ou meia lua, com faca afiada. A cebolinha verde também deve ser picada com cuidado. Nada de cebola roxa. O azeite tem que ser extravirgem e obedecer às regras do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Sal e pimenta são a gosto. Os acompanhamentos? Apenas os previstos: mostardas (amarela ou escura), molho de pimenta e azeite extra.

Indicação Geográfica e a preservação da autenticidade

A diferença entre a carne de onça, o steak tartare e o Hackepeter está nos detalhes e na simplicidade. “O steak tartare geralmente leva filé mignon e outros ingredientes como, alcaparras e gema de ovo. Já a carne de onça é feita apenas com patinho ou alcatra e leva sal, pimenta, azeite de oliva, cebola branca e cebolinha verde ou cebolete. Só isso. É um preparo mais simples e direto”, explica Kula.
Para ele, a indicação geográfica vai muito além de um selo. “É um resgate histórico da nossa gastronomia e também uma afirmação de identidade cultural. Além disso, fortalece o turismo gastronômico e protege o prato contra descaracterizações. Um exemplo: se alguém fizer com outro pão que não seja o de centeio ou com cebola roxa, já não pode mais ser considerado a carne de onça típica de Curitiba”.
A Associação Amigos da Onça, responsável pelo pedido de reconhecimento junto ao INPI, é agora a detentora do selo da IG. Isso significa que cabe a ela zelar pela autenticidade da receita e pelo cumprimento rigoroso das especificações. Em outras palavras, é a guardiã da carne de onça curitibana, aquela que, quem provar, vai entender: tem que ter um bom pedaço de broa, carne fresca, cebola, cebolinha e um fio de azeite. Simples assim — como manda a tradição.

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