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Lei que multa quem descumprir regras contra a Covid é falha e gera insegurança jurídica
O endurecimento das punições a quem descumprir as medidas de combate à pandemia do coronavírus em Curitiba pode ser contestado na justiça por termos genéricos e falhos. É o que afirmam especialistas ouvidos pelo Bom Gourmet Negócios após a aprovação em segunda votação pela Câmara Municipal, nesta quarta-feira (9), do projeto de lei que aumenta as penalidades aos empresários que não coibirem ou forem omissos na visão de fiscais sobre certos comportamentos dos clientes em seus restaurantes.
O texto, enviado pela prefeitura no dia 30 de novembro em caráter de urgência, recebeu 20 emendas e teve dispensada a análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). No entanto, a poucos minutos da análise pelo plenário, a liderança do prefeito Rafael Greca na casa protocolou um substitutivo, que anulou todas as emendas propostas.
Artigos com explicações genéricas e o próprio trâmite do texto são passíveis de contestação judicial de acordo com Francisco Zardo, presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da Ordem dos Advogados do Brasil no Paraná (OAB-PR).
“É uma lei extremamente relevante que deveria ter passado por um debate nas comissões da Câmara, com a oportunidade para os vereadores contribuírem para o projeto mesmo em regime de urgência. A pandemia não pode ser motivo para o sacrifício do devido processo legal e do direito de defesa”, afirma.
A opinião de Zardo é compartilhada pelo advogado Marcello Lombardi, especialista em processo legislativo e direito empresarial, de que o projeto de lei da prefeitura possui tantas falhas na redação que pode ser contestado e perder a finalidade após a sanção do prefeito.
“Sem dúvida nenhuma, ela pode ser passível de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e assim será. O processo legislativo quando vem como mensagem do executivo, principalmente como mensagem de urgência, ultrapassa os filtros que o próprio legislativo já impôs para evitar esse tipo de lei inconstitucional”, analisa.
Para ambos, as autoridades sanitárias têm o dever de adotar medidas para proteção da saúde pública, e é melhor virem por lei do que por decreto, que é o que se estava fazendo desde março, quando começou a pandemia do coronavírus. No entanto, a redação do projeto de lei aprovado tem pontos que deixam a aplicabilidade subjetiva e sem um direito de contestação.
Falhas
Em termos genéricos, segundo Lombardi, toda lei precisa ter uma fundamentação e uma finalidade expressa, e também uma gradação das sanções. Estes são dois pontos questionados tanto pelos vereadores que protocolaram emendas ao projeto de lei do executivo como de entidades de classe, como a Abrasel-PR, que viram ao longo de todo o documento explicações genéricas sobre o que pode e o que não pode – deixando a cargo do fiscal a interpretação do motivo da autuação.
“A gente não é contra a lei, mas do jeito que está sendo colocada, ficamos sem segurança jurídica até mesmo de abrir o restaurante. Porque se o fiscal toma uma decisão equivocada, o restaurante vai receber uma multa que é sem condições de pagar ao invés de ser de uma forma orientativa, por escrito. Ficou muito subjetivo”, pondera Luciano Bartolomeu, diretor-executivo da seccional paranaense da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-PR). A entidade afirmou que levará a discussão à justiça.
Em uma das emendas apresentadas e negadas, foi pedido que o termo de “descrição sucinta da infração em termos genéricos” fosse alterada para “termos específicos e objetivos”, registrando por escrito e com testemunhas do motivo da autuação dentro do que prega o decreto 1640.
“Nunca vi um texto legal com essa redação, a infração precisa ser descrita especificamente para que o autor possa se defender com precisão, qual a autuação que está sendo imputada. Descrição genérica compromete ao direito de defesa, e isso não tem nada a ver com pandemia e é preocupante”, analisa Francisco Zardo.
O especialista vai além e pontua outra parte no texto que considera falha:
Parágrafo único. As omissões ou incorreções não acarretarão nulidade do auto de infração, quando no processo constarem elementos suficientes a comprovar a ocorrência da infração e/ou a responsabilidade do infrator.
“Me parece algo como tolerar falhas ou incorreções, enquanto que a lei deveria estimular o agente público para que fosse cuidadoso na lavratura do auto de infração. Como está é um estimulo a autos de infração mal redigidos”, completa.
Outra emenda proposta que foi derrubada com o substitutivo geral é quanto ao escalonamento das penalidades. Durante a sessão na Câmara Municipal, o vereador Paulo Rink (PL) propôs uma advertência por escrito antes de ser aplicada a multa pela eventual irregularidade, já que o texto inicial estabelecia apenas uma advertência verbal e diretamente para a multa, embargo, interdição e cassação do alvará de funcionamento. A emenda foi derrubada por orientação do líder do prefeito, que tem uma ampla base na casa.
“Como todo ato legislativo que prevê sanção, tem que ter um escalonamento, que parte da advertência, depois um auto de infração especificamente, e a partir daí as sanções. Quer dizer, sancionar uma lei que prevê punição mais grave que o ato administrativo geral é absolutamente inconstitucional”, ressalta Marcello Lombardi.
Responsabilidade
Um importante ponto questionado tanto pelos vereadores como pelas entidades de classe é quanto à responsabilidade pelos atos cometidos por clientes dentro e fora dos estabelecimentos. Para eles, o texto apenas explica que é obrigação dos empresários organizar filas do lado de fora do estabelecimento com as mesmas regras aplicadas internamente, como distanciamento mínimo de 1,5m entre as pessoas.
No entanto, para o uso de máscaras e
aglomerações do lado de fora, o projeto de lei não deixa claro de quem é a
responsabilidade. Rink propôs duas emendas ao texto, que foram derrubadas na
votação final:
aglomerações do lado de fora, o projeto de lei não deixa claro de quem é a
responsabilidade. Rink propôs duas emendas ao texto, que foram derrubadas na
votação final:
§ 7º A aplicação das penalidades previstas nesta Lei às pessoas jurídicas fica condicionada ao cometimento das infrações no espaço privado dos estabelecimentos.
§ 8º Quando a infração for cometida fora do espaço privado dos estabelecimentos, deve ser penalizada a pessoa natural responsável.
§ 8º Quando a infração for cometida fora do espaço privado dos estabelecimentos, deve ser penalizada a pessoa natural responsável.
“É um princípio geral do direito penal, nenhuma pena pode passar da pessoa do infrator", afirma Marcello Lombardi.
Zardo lembra que o empresário não tem poder de policia e nem autoridade sobre filas e aglomerações fora do estabelecimento. Porém, se for ele o gerador daquela fila, tem o compromisso de auxiliar para que ela não ocorra.
“Se por fatores alheios à vontade e ao cuidado do
empresário, como pessoas que compram algo dentro e se aglomeram na calçada, aí
me parece que ele não pode ser autuado. É responsabilidade das autoridades
públicas, ele pode chamar a polícia reportando o que está acontecendo”,
ressalta.
empresário, como pessoas que compram algo dentro e se aglomeram na calçada, aí
me parece que ele não pode ser autuado. É responsabilidade das autoridades
públicas, ele pode chamar a polícia reportando o que está acontecendo”,
ressalta.
Embora muitos dos dispositivos da lei ainda sejam
passíveis de regulamentação por decreto segundo o substitutivo geral do
vereador Pier Petruzzielo, Francisco Zardo lembra que tudo vai depender de como
a legislação for aplicada no dia a dia.
passíveis de regulamentação por decreto segundo o substitutivo geral do
vereador Pier Petruzzielo, Francisco Zardo lembra que tudo vai depender de como
a legislação for aplicada no dia a dia.
“É muito difícil discutir certos pontos sem
especificar os atos na lei, como possíveis infrações que o legislador consegue
antever. Já outras realmente devem ser regulamentadas posteriormente”, diz.
especificar os atos na lei, como possíveis infrações que o legislador consegue
antever. Já outras realmente devem ser regulamentadas posteriormente”, diz.
Atraso e falhas
Para os especialistas ouvidos pelo Bom Gourmet Negócios, a lei é válida e necessária para o bem da saúde pública, mas veio atrasada e com falhas.
“A lei somada ao decreto regulamentador e mais regulamentos sanitários mencionados nela permitam aos cidadãos compreenderem com absoluta clareza o que é certo e o que é errado. Desde o primeiro momento deveria haver uma lei formal estabelecendo as infrações e sanções. Até aqui foi feito por meio de decreto, e não me parece que seja o meio adequado”, ressalta o presidente da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da OAB-PR.
Já para Marcello Lombardi, o projeto todo é apenas um pretexto do poder público para não reconhecer que errou na condução da pandemia. “Medidas como essa, de cortina de fumaça, só servem para dispersar a atenção da omissão do estado em agir de forma concreta e efetiva contra a pandemia”, critica.
A lei agora será encaminhada para a sanção do prefeito Rafael Greca (DEM) e passará a valer após a publicação no Diário Oficial.