Legado árabe na Saldanha Marinho: uma mordida na história do Armazém Califórnia
Bom Gourmet
31/03/2025 12:10
O "Herói da Saldanha", como é chamado carinhosamente entre os frequentadores do centro de Curitiba, chega aos sessenta anos com fôlego de 18, muitas novidades no cardápio, abertura de uma nova filial e provando que não há antagonismo entre tradição e inovação quando o principal ingrediente é o amor em família.
Khalil, um dos quatro filhos de Maged Omairi, é o responsável por modernizar o negócio de família e transformá-lo em restaurante de sucesso, atraindo gente de toda a cidade e turistas de fora do Brasil. Como bom patrício, em muitos momentos refere-se ao Armazém como "loja", é trabalhador, atento, simpático e reverencia com orgulho a companhia do pai, presença festejada no caixa do restaurante, onde chama atenção ao fazer as contas de cabeça.
Apesar do Armazém Califórnia como restaurante de sucesso ser uma conquista de Khalil, Maged é, em si, a própria história do Califórnia, seja como panificadora, casa de frutas ou atual Armazém.
Bodas de Diamante
Seu Maged e o Califórnia celebram, em 2025, sessenta anos de vida em comum, ou seja: Bodas de Diamante. Simbolicamente, o diamante representa a durabilidade, resistência e estabilidade de uma relação que consegue atravessar seis décadas. É de se pensar: se não fosse Maged, alguém saberia que há tanto tempo existiu uma panificadora chamada Califórnia no Terminal do Guadalupe?
Da panificadora para Casa de Frutas em 1967, Maged transfere-se para a Rua José Bonifácio (ao lado da Catedral Metropolitana de Curitiba, bem próximo ao atual endereço) e introduz a oferta de secos, molhados e frutas. Durante 39 anos, a então chamada Casa de Frutas Califórnia foi referência em produtos de qualidade e frutas frescas no centro da cidade.
Maged Omairi, à esquerda, na Casa de Frutas Califórnia
Atualemente, no Armazém Califórnia, Maged mostra sua foto jovem
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Um casamento tem altos e baixos, e em 2006, Maged, com quase 40 anos anos de trabalho, encontrava-se cansado. O comércio local havia mudado, assim como a cidade e, principalmente, a região em que estava: "o centro histórico se tornou abandonado pelos governantes, menos amigável e tenso", o que contribuiu para o desânimo de Maged. Em 2006, Maged resolve fechar a Casa de Frutas.
Nota: Antes de receber o Armazém Califórnia, o mesmo ponto - Saldanha Marinho, 68 - serviu de Pensionato para Moças e foi a primeira loja da Batavo em Curitiba. Hoje está enquadrada como UIP - Unidade de Interesse Patrimonial.
Nesse meio tempo, Khalil seguia como um administrador de empresas bem sucedido em Porto Alegre. Quando o pai, cansado, resolve fechar a Casa de Frutas, Khalil já havia resistido aos apelo da matriarca. A esposa de Maged, entre os quatro filhos, insistia em solicitar a presença de Khalil junto ao pai. Entretanto, foi uma reviravolta do destino quem tomou a decisão por Khalil:
“A doença de minha mãe tornou impossível ficar indiferente aos seus pedidos. Quando cheguei, a Casa de Frutas tinha fechado há pouco tempo. De abril a agosto de 2006, reabrimos como armazém, com os secos e molhados, as frutas e um refrigerador. Percebi que aquilo não seria suficiente para o futuro e nem para cobrir as despesas médicas de minha mãe.”
Como administrador profissional e determinado a ajudar aos pais, Khalil assume o Armazém e inicia uma série de mudanças. Aos poucos, introduz as pastas e as esfihas caseiras que imediatamente se tornam sucesso, além de produtos da culinária árabe tradicional. O boca a boca se espalha e Khalil percebe a oportunidade para oferecer o primeiro prato feito da casa, o Mjadra, às sextas-feiras. De lá para cá, o Armazém Califórnia se consolidou e ganhou fama como um dos melhores árabes de Curitiba.
Sob o comando de um Omairi, e o seu Maged?
Maged continua no Armazém, mas hoje, quem chega cedo para abrir a loja e sai somente após o último cliente é Khalil. Simpático, falante e agitado, Khalil se desdobra em múltiplas funções: confere notas, rege a cozinha, verifica se os auxiliares estão atentos aos pedidos por aplicativo. Observa a organização do salão, entra e sai em direção a uma obra em frente à loja diversas vezes. Na volta, revela: "ali será finalmente o Café do Armazém, o projeto que foi interrompido na pandemia e agora está prestes a ser concluído".
Khalil também cuida de quase todas as inovações no cardápio do Armazém - "quase" todas porque Maged, ótimo cozinheiro intuitivo, acaba de trazer uma novidade de sua última visita ao Líbano: as batatas de Tia Jamal. "São batatas fritas do jeito que se faz no Líbano, de modo rústico mas sem as cascas, com temperos especiais. Quase não se vê fritas nos árabes locais, mas por lá é prato tradicional. São mais gostosas do que qualquer outra", explica Khalil.
Dos Omairi, Khalil também herdou o dom da culinária. Desde sua chegada, os diversos pratos do dia são criados por ele, com inovações que incorporam ingredientes locais, mas sem se distanciar do oriente médio, como o corte em tiras de alcatra acompanhada de quibe assado e molho especial, o novo "Alcatra Al Sufra", um prato feito para compartilhar entre amigos.
Alcatra al Sufra
Mix de coalhada, esfiha, salada e quibe
O delicioso quibe o Armazém
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Sábado no centro e o que faz as pessoas esperarem duas horas na fila?
Com o movimento da semana consolidado, restava o desafio do sábado, um dia em que o centro esvaziava e sua clientela habitual, formada por comerciantes, advogados, jornalistas, voltava para os bairros. “Era o dia mais fraco, deserto mesmo. Criei pratos especiais só para os sábados, investi em ações e promoções para atrair o público. Hoje é o nosso dia de maior movimento, com cada mesa chegando a ser ocupada de três a quatro vezes. As filas de espera ultrapassam duas horas, e mesmo avisando sobre a demora, os clientes esperam. É imensamente gratificante ver essa conquista.”
A maior justificativa para encarar as filas de sábado, sem dúvida, é a qualidade da comida árabe do Armazém. Para quem tiver pressa, a opção é escolher no balcão ou fazer o pedido via aplicativo de entrega. São diversas opções entre esfirras, quibes, tabules fresquíssimos e coalhadas cremosíssimas. Não deixe de levar o pão com zaatar, mistura de temperos feita ali mesmo no restaurante.
Entre os doces, destaque para as Belewa (ou Baklava), doces de massa folhada muito fina e amanteigada, com os recheios de Nozes ou Pistache, além do exótico bolo de sêmola na calda de água de laranjeira, Namura.
Quibes no balcão
Khalil Omairi aponta para reportagem da Gazeta do Povo
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Outro ponto alto do Armazém está em sua oferta de bebidas de qualidade, entre as quais cervejas de rótulos especiais e a carta de vinhos, formada através de uma extensa pesquisa de Khalil - que investiu tempo em cursos de sommelier.
Além-mar
Aliás, sobre vinhos, Khalil contou uma história recente que tanto reafirma a reputação da boa comida do Armazém Califórnia quanto de sua carta de vinhos:
"No ano passado, recebi a visita de um casal de Lisboa, onde o marido, português, em sua segunda visita a Curitiba, fez questão de retornar no Armazém. A coincidência hilária ocorreu quando eu me ofereci para harmonizar o prato com um vinho português e descobri que o cliente era o garoto-propaganda daquela mesma marca em Portugal."
Com quase sessenta anos, a trajetória do Armazém Califórnia encontrou o rumo certo. Para este ano, além das ousadias criativas de Khalil e Maged na cozinha e a inauguração do Café, as crescentes filas demonstram que o melhor está apenas começando para os Omairi. Viva o Armazém Califórnia!
Serviço Armazém Califórnia
Rua Saldanha Marinho, 68, Centro, Curitiba - PR
De segunda à sexta, das 9 às 19h; Sábado das 9 às 17h