Legado árabe na Saldanha Marinho: uma mordida na história do Armazém Califórnia
Bom Gourmet
31/03/2025 12:10
O Armazém Califórnia, ou "Herói da Saldanha" - como é carinhosamente chamado pelos frequentadores do centro de Curitiba - chega aos 60 anos com fôlego de 18, novidades no cardápio, abertura de um Café e, acima de tudo, prova que tradição e inovação são parceiras quando o principal ingrediente é o amor em família.
Esfiha de carne.Foto Patricia Mannarino
Mesa de almoço. Acervo Armazém Califórnia
Ninho de Nozes. Foto Patricia Mannarino
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Fartura, cores e perfume - no imaginário ocidental, esta é a maneira que se apresentam os negócios dos imigrantes árabes. E nos negócios da família Omairi, esse quadro está presente em todas as fases do Armazém Califórnia: seja no curto período como Panificadora, na longeva Casa de Frutas ou como o atual restaurante. Em comum, estabelecimentos comerciais que trabalham com alimentos e tem uma relação direta com os clientes.
Khalil Omairi, um dos quatro filhos de Seu Maged, é o responsável pelas mudanças do Califórnia nos últimos 18 anos. Coube a ele modernizar o negócio de família e transformá-lo em restaurante de sucesso, atraindo gente de toda a cidade e turistas do exterior. Como bom patrício, em muitos momentos Khalil refere-se ao Armazém como "loja". Trabalhador, atento e simpático, reverencia com sorriso no rosto a companhia do pai, presença festejada no caixa, onde chama atenção ao fazer as contas de cabeça.
Embora o sucesso do Armazém Califórnia como restaurante seja uma conquista de Khalil, Maged é, por si mesmo, a própria história do Califórnia.
Bodas de Diamante
Seu Maged e o Califórnia celebram, em 2025, sessenta anos de vida em comum. Se fossem um casal, fariam Bodas de Diamante, pedra que representa a durabilidade, resistência e estabilidade de uma relação que consegue atravessar seis décadas.
Maged Omairi, um jovem imigrante libanês chegou a Curitiba e logo adquiriu a Panificadora Califórnia, então localizada no Terminal do Guadalupe. Em 1967, Maged transfere-se para a Rua José Bonifácio (ao lado da Catedral Metropolitana de Curitiba, bem próximo ao atual endereço) e introduz a oferta de secos, molhados e frutas na Casa de Frutas Califórnia. Durante 39 anos, a Casa de Frutas rendeu trabalho diário para seu Maged, mas também transformou-se em referência de produtos de qualidade e frutas frescas.
Maged Omairi, à esquerda, na Casa de Frutas Califórnia
Atualemente, no Armazém Califórnia, Maged mostra sua foto jovem
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Em 2006, Maged estava cansado: eram mais de 40 anos anos de trabalho e o entorno da Casa de Frutas não era mais seguro. O filho Khalil diz: "o centro histórico se tornou abandonado pelos governantes, menos amigável e tenso". Em abril desse mesmo ano, Maged resolve fechar a Casa de Frutas.
Nota: Antes de receber o Armazém Califórnia, o mesmo ponto - Saldanha Marinho, 68 - serviu de Pensionato para Moças e foi a primeira loja da Batavo em Curitiba. Hoje está enquadrada como UIP - Unidade de Interesse Patrimonial.
Nessa época Khalil morava em Porto Alegre, onde seguia como um bem sucedido dministrador de empresas. Quando Maged resolve fechar a Casa de Frutas, a mãe de Khalil, Maria do Carmo El Omairi pede ao filho que venha se juntar ao pai. Ele resistiu, contudo, uma reviravolta do destino tomou a decisão por Khalil:
“A doença de minha mãe tornou impossível ficar indiferente aos seus pedidos. Quando cheguei, a Casa de Frutas tinha fechado há pouco tempo, em abril. Em agosto do mesmo ano (2006), reabrimos como armazém, com os secos e molhados, as frutas e um refrigerador. Percebi que aquilo não seria suficiente para o futuro e nem para cobrir as despesas médicas de minha mãe.”
Como administrador profissional e determinado a ajudar aos pais, Khalil assume o Armazém e inicia uma série de mudanças. Introduz as pastas e as esfihas caseiras que imediatamente se tornam sucesso, além de produtos da culinária árabe tradicional. O boca a boca se espalha e o número de clientes aumenta. Sem alarde, Khalil oferece o primeiro prato feito da casa, o Mjadra, às sextas-feiras. De lá para cá, o Armazém Califórnia se consolidou e ganhou fama como um dos melhores árabes de Curitiba.
Quando assumiu a gestão, Khalil pensou em mudar o nome do Armazém para algo mais próximo às suas raízes. No entanto, uma consulta ao Sebrae foi enfática ao afirmar que o "Califórnia" fazia parte do legado cultural da cidade.
Alcatra al Sufra
Mix de coalhada, esfiha, salada e quibe
O delicioso quibe o Armazém
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Maged continua no Armazém, mas hoje, quem chega cedo para abrir a loja e sai somente após o último cliente é Khalil. Entre o abrir e fechar das portas, Khalil de desdobra em várias tarefas: confere notas, rege a cozinha, verifica se os auxiliares estão atentos aos pedidos por aplicativo. Observa a organização do salão, entra e sai em direção a uma obra em frente à loja diversas vezes. Na volta, revela: "ali será o Café do Armazém, o projeto que foi interrompido na pandemia e agora está prestes a ser concluído".
Khalil também cuida de quase todas as inovações no cardápio do Armazém - "quase" todas porque Maged, ótimo cozinheiro intuitivo, acaba de trazer uma novidade de sua última visita ao Líbano: as batatas de Tia Jamal. "São batatas fritas do jeito que se faz no Líbano, de modo rústico mas sem as cascas. Quase não se vê fritas nos árabes locais, mas por lá é prato tradicional. São mais gostosas do que qualquer outra e têm nossos temperos especiais", explica Khalil. Entre os "temperos especiais" do Armazém, Khalil cita especialmente a pimenta síria e o zaatar, feitos por eles.
Dos Omairi, Khalil também herdou o dom da culinária. Desde sua chegada, os diversos pratos do dia são criados por ele, com inovações que incorporam ingredientes locais, mas sem se distanciar do oriente médio, como o corte em tiras de alcatra acompanhada de quibe assado e molho especial, o novo "Alcatra Al Sufra", um prato feito para compartilhar entre amigos.
Filas de espera transformam o sábado da Saldanha Marinho
Khalil comenta que nesses 18 anos, um dos maiores desafios para o Armazém consistia no movimento dos sábados, o pior dia da semana desde a época da Casa de Frutas. A clientela da semana, formada por comerciantes, advogados e jornalistas sumia, voltava para seus bairros. Não restava quase ninguém no centro histórico.
“Era o dia mais fraco, deserto mesmo. Criei pratos especiais só para os sábados que eu divulgava durante a semana aos clientes, investi em ações e promoções para atrair o público. Atualmente, o sábado é o nosso dia de maior movimento, com cada mesa chegando a ser ocupada de três a quatro vezes. As filas de espera ultrapassam duas horas, duas horas e meia. Eu aviso aos clientes sobre a demora, mas eles esperam. Para nós do Armazém essa conquista é gratificante.”
Quibes no balcão
Khalil Omairi aponta para reportagem da Gazeta do Povo
Maria Cristina de Castro, colaboradora do Armazém há 18 anos
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A maior justificativa para encarar as filas de sábado, sem dúvida, é a qualidade da comida árabe do Armazém. Enquanto as mesas estão ocupadas, dá para tomar um chope - servido exclusivamente nesse dia.
Para quem não resistir ao aroma da pimenta síria que invade a calçada, há muitas opções no balcão: esfirras, quibes, tabules e coalhadas cremosíssimas, pastas de grão de bico e berinjela, pães de zaatar e vários doces como as Belewa (ou Baklava) de Nozes ou Pistache, os ninhos doces e o exótico bolo de sêmola na calda de água de laranjeira, Namura.
Outro ponto alto do Armazém está em sua oferta de bebidas de qualidade, entre as quais cervejas de rótulos especiais e a carta de vinhos, formada através de uma extensa pesquisa de Khalil - que investiu tempo em cursos de sommelier.
Além-mar
Aliás, sobre vinhos, um episódio recente reafirma a reputação de sua adega:
"No ano passado, recebi a visita de um casal de Lisboa, onde o marido, português, em sua segunda visita a Curitiba, fez questão de retornar no Armazém. A coincidência hilária ocorreu quando eu me ofereci para harmonizar o prato com um determinado vinho português e descobri que o cliente era o garoto-propaganda daquela mesma marca em Portugal."
Com quase sessenta anos, a trajetória do Armazém Califórnia encontrou o rumo certo. Para este ano, além das ousadias criativas de Khalil e Maged na cozinha e a inauguração do Café, as crescentes filas demonstram que o melhor está apenas começando para os Omairi. Viva o Armazém Califórnia!
Serviço Armazém Califórnia
Rua Saldanha Marinho, 68, Centro, Curitiba - PR
De segunda à sexta, das 9 às 19h; Sábado das 9 às 17h