Os aplicativos de entrega são o novo vilão dos restaurantes?

Um dos
acrônimos mais populares utilizado para explicar o atual ambiente caracterizado
por velozes transformações é o VUCA. De acordo com esse conceito vivemos em um
mundo Volátil, Incerto (Uncertain, em inglês), Complexo e Ambíguo.

Dessas três
dimensões, inegavelmente, é essa última a mais instigante já que uma das
características mais marcantes da atual sociedade é sua ambiguidade.

Para melhor
entender essa premissa podemos recorrer ao dicionário que aponta que algo
ambíguo é aquele que admite interpretações diversas e até contrárias.

Assim, se por
um lado a tecnologia permite que tenhamos atendidos todos os nossos desejos e
gostos de forma individualizada, ao mesmo tempo há os riscos da privacidade dos
dados já que temos de compartilhar nossas informações com um terceiro; se temos
condições de nos relacionar com milhares de pessoas ao mesmo tempo de forma
autônoma e sem intermediários, por outro há o risco causado pela disseminação
das famigeradas fake news pelas mesmas redes de relacionamento e assim por
diante.

Essa mesma ambiguidade tem impactado um dos setores mais tradicionais da economia. O segmento de alimentação, em particular o de restaurantes, cuja estrutura se mantinha estável há décadas passa por uma ebulição com poucos precedentes devido a evolução tecnológica. Sendo mais específico, essa revolução é causada por uma única tecnologia: os aplicativos de entregas como iFood, Uber Eats, Rappi e similares.

O serviço de entregas em domicílio sempre foi um tema sensível para as empresas do setor, principalmente, as de menor porte. Para realizar com êxito essa atividade era necessária uma estrutura de atendimento às demandas que vinham por telefone, um processo integrado ao negócio convencional para o preparo dos pedidos e uma estrutura de logística para entregas.

Além da implantação desse sistema que, apesar da aparente simplicidade é complexo para empreendedores de menor porte, havia o desafio da divulgação desse serviço que só era possível em larga escala com investimentos expressivos em publicidade.

Não à toa,
essa possibilidade sempre esteve concentrada ou para os restaurantes de maior
porte e estrutura como os fast foods e franquias ou então, na outra ponta, de
forma muito tímida por empresas que atendiam, exclusivamente, sua vizinhança
regional.

De forma até sorrateira e inesperada para a maioria do segmento, os aplicativos de entrega trouxeram uma nova dimensão para essa atividade. Todo processo de recepção e atendimento da demanda foi facilitado pela tecnologia bastando as empresas realizar o serviço de entrega.

Em pouco tempo, no entanto, até essa atividade não se tornou mais um problema com os próprios aplicativos desenvolvendo parcerias que viabilizam a logística de entrega sem que o restaurante necessite ter sua estrutura própria.

Além das questões operacionais, os aplicativos caíram no gosto da população em geral. Impulsionados por agressivos investimento em mídia conquistaram um crescimento meteórico e exponencial. Apenas o iFood já faz mais de 20 milhões de entregas por mês no Brasil.

Estimulados
pela novidade, milhares de empreendedores embarcaram na novidade. Muitos deles
testemunham crescimentos de mais de 30% após terem aderido ao novo serviço.
Tudo ia às mil maravilhas até que a lua de mel começa a sofrer abalos.

Pequenos
empreendedores começam a manifestar sua contrariedade com o serviço já que não
recebem o mesmo número de pedidos que outrora. Alguns reclamam que sua
visibilidade no aplicativo muda constantemente e não tem domínio sobre esse
processo. Outros que para ser competitivo no aplicativo é necessário adotar
preços inexequíveis.

Mas, afinal o que aconteceu em tão pouco tempo para uma reversão dessa natureza nas expectativas desses agentes? Qual é a responsabilidade de cada um nesse processo?

Para responder a essa questão, podemos utilizar como paralelo o que sempre aconteceu no segmento de varejo. As grandes redes de supermercados sempre usaram e abusaram de seu poder de barganha já que eram as únicas possibilidades de acesso aos clientes para inúmeros fornecedores.

Esse posicionamento dominante com frequência rendia – e ainda rende – reclamações, principalmente, de empresas menores ou com marcas não tão fortes e expressivas que se tornam dependentes desses players para atingir seus objetivos.

Por outro
lado, as empresas que construíram sua reputação ao longo de décadas ostentam um
poder maior nesse equilíbrio de forças. Afinal, se o consumidor vai a um ponto
de venda e não encontra sua marca de refrigerante ou sabão em pó preferido ou
qualquer outro produto líder de categoria, ele, simplesmente, não faz a
substituição para uma opção alternativa e se locomove a outro supermercado
concorrente para fazer a aquisição desejada. Esse movimento é uma ameaça aos
varejistas dominantes que, nessas situações, não podem abrir mão de ter esses
fornecedores em seu portfólio.

É possível
traçarmos o mesmo paralelo no dilema dos restaurantes com os aplicativos de
entrega. Se restaurantes relevantes não estiverem presentes nas opções desse
serviço, sua atratividade diminui dramaticamente para o cliente que pode até em
algumas situações procurar opções substitutas, porém, em geral, irá buscar o
restaurante que melhor lhe atende abdicando do uso do aplicativo.

O mesmo não
ocorre, no entanto, com os restaurantes que não têm conexão com seu cliente ou
que são encarados de forma indiferenciada por eles sendo entendidos como
comodities. Estes empreendimentos se tornam presas fáceis para a concorrência
já que são facilmente substituídos por concorrentes do mesmo perfil ou mais
baratos.

É evidente
que essa dinâmica tem relação com o porte dos negócios já que os maiores têm
mais condições de realizar investimentos para fortalecer sua marca. Porém, o
mercado de gastronomia é um dos mais férteis em exemplos de empreendimentos
menores que se esmeram na qualidade de seu produto e serviço gerando
experiências memoráveis a seus clientes. Essas experiências são tão valiosas
que do dia para noite temos verdadeiros fenômenos popularizados em todo país.

A
responsabilidade por sofrer os impactos negativos do avanço dos aplicativos de
entrega é dos empreendedores do setor que não se dedicam a construir
diferenciais em seu negócio aumentando a conexão com seus clientes. Ao não se
preocuparem em criar uma experiência particular tornam-se alvo fácil para
outras opções concorrentes.

Essa dinâmica
tem menos a ver com a tecnologia e mais com a visão estratégica adotada pelos
empreendedores do setor. A tecnologia só veio a acelerar um processo de
degradação de negócios que acontece, de qualquer forma, em um ambiente com um
nível crescente de concorrência: quem não consegue se diferenciar, não consegue
ter sustentabilidade em sua evolução.

A solução
para o equilíbrio desse balanço de forças passa por uma análise profunda e
rigorosa do comportamento do cliente de cada negócio. O empreendedor deve
mergulhar na jornada de compra de seu consumidor entendendo quais são os
benefícios singulares que oferece a esse público. Aquilo que só ele pode
proporcionar. Essa perspectiva trará insumos para rever todo seu negócio
considerando como alocar os recursos internos necessários para gerar uma
experiência única a seus clientes.

Tendo
estruturada essa visão, o próximo passo é refletir sobre como é possível
comunicar esse valor não só a seus clientes, mas ao mercado em geral. A boa
notícia é que atualmente, principalmente devido a internet, é possível realizar
uma estratégia de comunicação muito dirigida com poucos recursos financeiros.

Ao se
posicionar dessa forma, o empreendimento obtém um maior equilíbrio de forças
não só com os aplicativos de entrega, mas em relação a qualquer fornecedor ou
agente similar já que se torna indispensável ao ator mais importante desse
cenário: seu cliente.

Seria leviano
afirmar que a implantação dessa estratégia é atividade trivial ou simples. De
forma alguma. Envolve uma boa dose de complexidade, principalmente, para
empreendedores que não se habituaram ou tiveram acesso a conhecimento sobre
gestão. Por outro lado, não resta outra alternativa já que essas novas soluções
vieram para ficar.

Quem não
conseguir se adaptar não conseguirá beneficiar-se de todas as vantagens
advindas desse novo contexto. Abrir mão dessa possibilidade não deixa de ser
uma opção já que inúmeras organizações do setor evoluíram seus negócios sem
contar com a receita do negócio de entregas domiciliares.

No entanto,
fica a provocação: se existe uma nova oportunidade a disposição, não seria o
caso de refletir sobre como é possível aproveitá-la adequadamente minimizando
os riscos dessa estratégia?

Vale a pena ousar pensar diferente em um mundo em mutação.