Experiência
O que estará em alta no mundo da gastronomia em 2020
Comer em frente ao computador durante o dia, brindar com os amigos à noite. A sequência é mais familiar do que queremos admitir. É fato que o cotidiano acelerado tem mudado nossa maneira de comer, mas o que isso significa para o setor de alimentação?
Aura de “lugar para encontros” dos restaurantes se intensifica e a corda bamba entre comer por necessidade fisiológica ou função social se torna menos trêmula. Passamos a ter consciência de que algumas refeições serão “apenas” para nos nutrir, enquanto outras, menos frequentes, serão fontes de prazer e de compartilhamento com família e amigos, seja no salão de um restaurante ou preparando uma massa com molho feitas do zero em casa.
Conveniência é a principal palavra para estabelecimentos de alimentação em 2020. “As pessoas querem comer bem, mas sem ter muito trabalho. As marcas trabalham isto com serviços de entrega, modelos de assinatura, lojas com horários alternativos, embalagens inteligentes, entre outros”, enumera Daniela Yazigi, especialista da empresa de previsão e análises de tendências da WGSN. Espaços híbridos, que reúnem um café, uma atividade cultural e uma loja de insumos e utensílios, aumentarão em quantidade.
Relatórios das agências Baum+Whiteman, Benchmark Global Hospitality, National Restaurant Association, Sterling-Rice Group e WGSN, que monitoram tendências e estudam o comportamento do consumidor, apontam alguns caminhos para 2020.
Algumas das macro-tendências dos anos anteriores ressoam com mais força para 2020: a preferência por produtos locais, aproveitamento integral dos ingredientes, preparos artesanais e naturais, como vinhos biodinâmicos, e menos carne no prato. Junto a elas, a entrada de proteína vegetal na alimentação de “carnívoros” — os hambúrgueres plant based das foodtechs, por exemplo.
Para o jornalista gastronômico Rafael Tonon, especializado em tendências, os limites entre refeições ficarão cada vez menos nítidos e os snacks podem ser uma solução para resolver a vontade de comer, sem demandar tanta energia e trabalho de preparar pratos ou ir a um restaurante.
“Em uma sociedade da economia criativa, com mais pessoas trabalhando como autônomos, os horários convencionados para as refeições não fazem mais tanto sentido. Por que não almoçar às 15h30?”, exemplifica Tonon. O surgimento de restaurantes all day, com cardápios que não mudam no decorrer do dia, são um dos sinais desse movimento. Em maio, Tonon lança o livro “Revoluções da comida” (título provisório) pela editora Todavia, em que trata dessa e de outras mudanças nos hábitos alimentares.
“Os restaurantes se segmentarão cada vez mais para promover experiências mais autênticas. Haverá mais interação entre serviço, comida e experiência de consumo, e os restaurantes tendem a diminuir seu tamanho. Assim terão mais restaurantes pequenos espalhados pela cidade, sempre cheios pois têm salão menor. Outra tendência é ampliar o horário de funcionamento e cardápio reduzido para reduzir custos fixos”, desenha Luiz Mileck, representante da Rede Latino-Americana de Food Design no Brasil, sócio e diretor-executivo no O Locavorista e idealizador do Coletivo Alimentar, uma instituição que propõe discussões em alimentação e gastronomia.
Confira as principais macro-tendências para a gastronomia em 2020:
Conveniência e encantamento
Atender a mais de um público, reunindo operações distintas em um mesmo endereço é um dos modelos a ganhar força em 2020. Um restaurante que temm salão com delivery e com venda de produtos para preparar em casa é um exemplo.
Espaços híbridos, também chamados de food hall, atenderão à ideia de conveniência. Essas operações mistas reúnem restaurantes, panificadoras, confeitarias, hortifruti, peixarias, bar, adega e outros — como o Eataly ou a Mercadoteca, em Curitiba.
“Ter um serviço de excelência e comida de qualidade é o mínimo, mas hoje em dia vemos que ter um ambiente agradável, que converse com o cardápio, se tornou essencial. O importante é sempre ser verdadeiro e original”, diz Daniela.
Kits de refeições prontas, com ingredientes porcionados, também entram no pacote de conveniência, bem como snacks mais elaborados, ricos nutricionalmente e também em sabor. A prática de comer sozinho, beliscando algo prático, pedindo um delivery ou cozinhando um kit em casa pode restabelecer o status dos restaurantes enquanto espaços sociais. “As pessoas vão cozinhar menos em casa, mas dedicarão mais tempo à atividade quando o fizerem. Terá uma preocupação maior em plantar o tempero, cozinhar como entretenimento e envolver outras pessoas”, prevê Mileck.
“Há experiências que só são possíveis em um restaurante”, crava Tonon. Nesta toada, restaurantes menores, em que os salões para algumas dezenas de pessoas fica de frente para uma cozinha aberta pode se tornar constante. Outra é a capacidade de a gastronomia contar histórias e encantar, seja por um menu degustação, seja com um conceito forte em cardápio e ambientação.
Delivery muda as regras do jogo
Quem pesquisa o setor de delivery afirma: não é o mesmo que tele-entrega. Com aplicativos intermediando restaurantes e clientes, as estratégias de venda e os preços mudam, e as expectativas em relação a entrega e embalagens sobem. Não apenas pela temperatura e apresentação do prato depois de uma viagem de motocicleta.
As possibilidades de criar uma experiência memorável a partir do delivery são muitas. Por exemplo: um preparo em que a finalização é feita pelo cliente; a embalagem e disposição dos pratos de maneira surpreendente; uma maneira de apresentar as opções no aplicativo que converse com o público-alvo, entre outros. “Com tantas variações, onde começa a experiência de comer no restaurante e onde começa a de comer em casa?”, questiona Tonon.
Com as dark kitchens ou “restaurantes fantasmas” (sem salão, apenas entregas), os custos operacionais diminuem, mas não a possibilidade de proporcionar uma experiência ao consumidor. Enquanto ferramenta para contar histórias, a gastronomia não perde sua potência ao chegar por delivery. “A mensagem tem de ser: tenho uma coisa para te contar que você não vai ver em outro lugar”, resume Tonon.
Estratégia: de olho nos dados
O crescimento de pedidos por delivery é um prato cheio para quem desenvolve os aplicativos. O recolhimento de dados de comportamento e de perfil permitem antecipar demandas, criar campanhas mais assertivas e balizar as decisões de empresários do setor de alimentação. O que é o mais pedido em uma noite chuvosa? Quanto mais o tempo passa, mais os dados coletados pelos apps geram respostas certeiras e os empresários tomam decisões mais rápidas.
Para os restaurantes, investir em tecnologia para gerenciar estoque, fornecedores, processos e preferências do público será imperativo. “As margens de lucro não aumentam, mas cada vez mais a tecnologia e o acesso a dados é uma parte importante do orçamento de um restaurante; mesmo dos pequenos”, diz o documento da National Restaurant Association (NRA), com previsões para os próximos dez anos do setor.
Bebidas: sem álcool, com gás
Nas bebidas, um aceno aos mocktails e a bebidas fermentadas, porém sem álcool, como kombucha. A sensação das bolhinhas satisfaz que está acostumado a consumir refrigerante, espumante ou chope, mas quer diminuir a ingestão de açúcar ou álcool. O crescimento do consumo de água com gás saborizada ou compondo drinks sem álcool também é esperado, junto dela, um perfil de sabor que puxa para o amargo, tais como cascas de cítricos, zimbro, lúpulo, entre outros.
No Brasil, o lançamento mais recente que vai ao encontro dessa tendência é um espumante da Ovnih, uma vinícola gaúcha cujos vinhos são comercializados em lata. O Ovnih Sparkling Hop é um espumante que leva uma adição de lúpulo na composição. O ingrediente acrescenta um leve amargor e notas de cítricos à bebida.
Menor impacto no meio ambiente
A recusa por canudo de plástico é um dos sintomas da mudança de comportamento que vêm sendo observada há anos. O desejo por causar menos impacto no meio ambiente seja na produção de lixo, seja no desperdício de alimentos, segue como uma demanda do público e passa a ter efeitos no setor de alimentação. Embalagens descartáveis diminuem em produtos de gôndola e utensílios reutilizáveis ganham espaço no salão — canudos de inox ou vidro, talheres de bambu em vez de plástico.
“Um dos principais eixos é o tripé da sustentabilidade: ecológica, social e financeira. No primeiro, é a redução de lixo, a compostagem, repensar embalagens e a simplificação da dinâmica do serviço. Na sustentabilidade social, as pessoas estão mais envolvidas no serviço, com a horizontalização das funções, proprietário e funcionários executando juntos”, explica Mileck. Na parte financeira, auto-atendimento com pedido em totens e retirada no balcão, cardápios digitais e operações com apenas uma pessoa (como os cafés to-go, em que o barista serve o café e cobra a conta) diminuem custos fixos de funcinonário e de material.
Com isso, cresce também a valorização de produtos tidos como mais naturais, como vinhos biodinâmicos e proteína vegetal fazendo as vezes de “carne”, como os hambúrgueres vegetarianos mais modernos. O relatório da Sterling-Rice Group prevê um aumento pela procura de selos de certificação livres de glifosato, além dos já comuns livre de transgênicos ou orgânicos. O glifosato é um agrotóxico proibido na União Europeia, mas é o mais usado no Brasil — se a certificação pegar nos EUA, é possível que encontre um reflexo no Brasil.
“As pessoas realmente aprenderam a ler rótulos e estão enxergando o alimento além de um sinônimo de prazer e satisfação”, indica Daniela Yazigi, da WGSN. “Isso engloba não só a sustentabilidade, mas também conscientização de diversidade e de aprendizado sobre o alimento”, completa.
“A indústria lançará mais produtos com a informação de que são saudáveis, como pães de fermentação natural, que certamente podem ter uma pequena porcentagem de fermentação natural na produção. Mas a indústria ainda surfa na desinformação do consumidor e no uso de termos que ainda não estão tão presentes no dia a dia da população média”, analisa Mileck.
A valorização da carne enquanto ingrediente nobre se intensifica, não apenas por uma questão macro-econômica, mas porque as pessoas passaram a se preocupar com a cadeia de produção animal mesmo não sendo vegetarianas. Açougues “éticos” e a demanda por certificação de abate humanitário também crescem — outros cortes começam a surgir, segundo relatório da estadunidense National Restaurant Association (NRA), como shoulder tender, oyster steak e merlot cut.
Menos carne, mais proteína
Se o consumo de carne diminui, o volume de proteína não: proteína vegetal continua sendo a base para fazer produtos similares a carnes, laticínios e outros produtos de origem animal. A proteína de ervilha toma o espaço da soja como base para estes produtos plant based e depois de uma popularização de leites vegetais de soja e amêndoa nos mercados americano e europeu, a aveia será mais explorada pelo setor.
Algas e cogumelos entram como ingredientes para acrescentar sabor e cor a produtos como snacks e substitutos para carnes, por concentrarem moléculas responsáveis pelo gosto umami e apresentarem alto valor nutricional: a indústria aposta na estratégia de “dois coelhos em uma cajadada só”.
O relatório da WGSN traz o termo “palato pós-industrial” da antropóloga Tania Ahmad para definir a combinação de uma comfort food, um prato nostálgico, porém composto de ingredientes tecnológicos, como “carne de plantas”. A WGSN aponta a carne como um “novo luxo”, ao lado de bebidas alcoólicas e do (bom) chocolate.
Comida compartilhável
A expressão “comida compartilhável” pode ser lida nos dois sentidos: para repartir com outras pessoas e/ou um prato que rende uma bela foto para as redes sociais.
“Os restaurantes vão se tornar cada vez mais templos para comida de socialização e de prazer”, vaticina Tonon. Quando o hábito de beliscar se tornar mais cotidiano, é possível que seja feita uma única refeição por dia, daquelas como manda o figurino: sentado à mesa, com companhia e com preparos que sejam “comida de verdade” na aparência. “Se antes você tinha que comer uma bolacha, fruta ou salgadinho na pausa da tarde, hoje a indústria tem uma coisa pequena que envolve hedonismo e nutrição para esse momento”.
Para Mileck, comer como uma atividade social ficará em evidência no próximo ano, mas não será cotidiana. “Vai diminuir, mas haverá uma procura por experiências mais autênticas fora de casa”, aposta.
Mais cores na apresentação dos pratos e a aposta é nos tons de azuis e roxos, como batata-doce, milho, algas (espirulina, por exemplo), manjericão, repolho e a flor da ervilha-borboleta (clitoria), que tinge de azul o preparo quando reage com um ácido. Abrasileirando o tom, o jenipapo como tonalizante para massas e cremes pode se popularizar.
Cores vibrantes como vermelho da beterraba, o verde do matchá e o amarelo da cúrcuma também pintarão nos pratos. A cor será uma das estratégias adotadas pelos restaurantes para aparecer mais no seu feed: quanto mais bonito e surpreendente o prato, mais engajamento a foto gera nas redes sociais.
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