Experiência
Na Austrália, produtor de vinho utiliza técnica peculiar para cultivar videiras
Em um dia quente e ensolarado de fevereiro, Will Berliner, proprietário da Cloudburst, se agachou sob o ninho de pássaros que estava entrelaçado às videiras de seu pequeno vinhedo, localizado a apenas três quilômetros do Oceano Índico, na Austrália Ocidental.
Algumas vinhas pareciam improdutivas e sem vida, as videiras aguardando seu destino desolado em uma solidão monótona e amarga. Uma delas, de pouco mais de um hectare, era diferente. Estava viva com o som de pássaros e insetos que rodeavam as árvores de murta nas proximidades. Os cheiros de terra fresca e vegetação verde impregnavam o ar. Se for possível dizer que um vinhedo é feliz, esse em particular, parecia em êxtase.
Quase na metade do caminho de uma sequência de videiras, Berliner parou, sentou-se com as pernas cruzadas no chão entre as plantas e disse: “As videiras dizem o que deve ser feito. Por isso, estou aqui, observando, escutando e tentando atender aos anseios delas.”
Aparentemente, elas se comunicam muito bem. Berliner produz pequenas quantidades de cabernet sauvignon, chardonnay e malbec fantásticos nesse centro de produção de vinhos na Austrália. Se a cidade de Margaret River tivesse um produtor de vinho cult, esse poderia muito bem ser Berliner, com a Cloudburst.
Os preços estão à altura da fama. Das quase 4.800 garrafas lançadas pela Cloudburst todos os anos, apenas algumas poucas chegam ao mercado americano. Os valores vão de US$ 175 a US$ 250 (de R$ 680 a R$ 970).
Mas no sofisticado restaurante Eleven Madison Park, em Manhattan, é possível encontrar o puro e adorável chardonnay Cloudburst de 2013 no cardápio por US$ 310 (R$ 1.200). Não tão mais caro do que os cerca de US$ 200 (R$ 778) , preço ao encomendar da vinícola. O soberbo cabernet sauvignon de 2012 sai por US$ 390 (R$ 1.517) no cardápio, ou cerca de US$ 250 (R$ 972) na vinícola.
Para algumas pessoas de Margaret River, uma descontraída cidade litorânea conhecida pelo surfe e pelos vinhos, Berliner, de 64 anos, é como um iconoclasta, tanto por sua forma peculiar de lidar com o vinhedo como pelos preços além do normalmente praticado. Além disso, é americano, nascido em Nova York, casado com uma australiana, Alison Jobson. Foi apenas em 2005 que começou a plantar o vinhedo e só em 2012 se mudou definitivamente para Margaret River.
Mas Berliner garante, em relação ao vinhedo e ao vinho, que está apenas seguindo sua musa inspiradora e fazendo o que faz sentido para ele. “Para mim, é um caminho espiritual”, afirmou. “Existe um espírito para tudo e essa é uma das maneiras de acessá-lo, por meio dos vinhos.”
Berliner se refere ao vinhedo como “meu dojo”, termo japonês usado pelos americanos geralmente para denominar uma escola de artes marciais. Berliner, contudo, o emprega no seu sentido mais original: os dojos no Japão eram normalmente ligados a templos e traziam um componente espiritual. Os alunos, por meio da disciplina que estudavam, aprendiam uma maneira de viver.
“Vejo a viticultura como um ‘rumo’, ou um caminho para a consciência, mais do que como uma vocação. E meu foco está mais em estar atento e escutar do que em comercializar. Para mim, o vinhedo é um espaço profundo de ritual, aprendizado e espírito que age sobre mim assim como ajo sobre ele. Para ter sucesso ali, preciso me entregar um pouco. Sou muito grato e privilegiado por ter uma vida em que posso ficar ao ar livre”, relatou.
A história de Berliner
Berliner cresceu na costa sul de Long Island, nas cidades de East Rockaway e Woodmere. Foi uma criança que sempre gostou de estar ao ar livre, amava acampar, caminhar por pântanos e colecionar insetos e ninhos de pássaros abandonados.
Interessou-se pela Escola de Silvicultura e Estudos Ambientais da Universidade Yale, onde se formou em biologia. Em seguida, passou a liderar viagens de aventura enquanto aprendia a procurar e comer alimentos selvagens. Fundou uma empresa produtora de equipamentos de acampamento.
Quando a vendeu, usou o dinheiro para comprar 269 hectares de terras florestais em New Hampshire e, em 2004, após três anos em busca de um lugar que satisfizesse a ele e a sua esposa, adquiriu 101 hectares perto de um parque nacional em Margaret River.
Naquela época, disse Berliner, ele não sabia muito sobre vinhos e não tinha intenção de ter um vinhedo. A ideia original era ter uma pequena plantação de abacate para bloquear a vista que tinha do trânsito. Especialistas em agricultura da região, entretanto, sugeriram que aquele solo rochoso e arenoso não seria bom para os abacates, mas poderia ser perfeito para tipos de uvas destinados à produção de vinho.
Sempre um aluno aplicado, Berliner encontrou um mentor que o apresentou aos vinhos clássicos. Ele foi especialmente seduzido, assim como muitos outros antes dele, pelo tinto Bordeaux do Château Margaux, feito majoritariamente de cabernet sauvignon, e pelo branco Burgundy do Domaine Roulot, produzido apenas com chardonnay.
Tendo encontrado sua inspiração, Berliner plantou a vinícola aos poucos, um lote por vez, observando e aprendendo. Como essa parte da Austrália não sofre com a filoxera, praga devastadora que ataca as raízes da vinifera – a espécie de videira europeia responsável por virtualmente todas as uvas clássicas usadas para a produção de vinho –, as videiras de Berliner são plantadas em suas próprias raízes, em vez de serem implantadas em porta-enxertos americanos, que são imunes à praga.
A viticultura que ele pratica é radicalmente diferente da empregada pela maioria dos produtores de Margaret River. Ele não irriga, tampouco ara, fertiliza ou quebra a terra de nenhuma maneira, pois não quer perturbar a vida microbiana do solo.
Berliner defende uma filosofia, cada vez mais em voga, que não vê as videiras como plantas isoladas, mas sim como uma sociedade cooperativa que comunica suas necessidades por meio de sistemas de raízes e colônias fúngicas de micélio. Ele enxerga o vinhedo como um organismo vivo com inteligência própria, e não como um grupo de videiras individuais.
“É realmente possível ouvir o que está acontecendo, mas não ouvimos. Impomos nossos desejos à natureza e estamos sofrendo as consequências disso”, argumentou, acrescentando: “Aponto o dedo para esse tipo de raciocínio confiante de que o mundo natural nos deve ser conveniente, somos mais importantes do que ele e sabemos o que é melhor para ele. Essa ideia não me representa.”
Berliner prefere não rotular sua maneira de praticar a agricultura como orgânica, biodinâmica ou qualquer coisa do tipo. Sua intenção não é seguir uma receita, mas simplesmente responder ao que ele percebe que o vinhedo quer.
“Às vezes, ele exige tirar as ervas daninhas; outras vezes, pede um tipo particular de adubo. A natureza tem uma habilidade de levar as coisas para determinados lugares, se você permitir que o processo aconteça, se prestar atenção. O trabalho não precisa ser tão penoso”, ensinou.
A forma de pensar de Berliner é extensiva aos animais com quem ele divide a terra, incluindo passarinhos e cangurus. Ele protege o vinhedo com redes, mas tenta disponibilizar outras comidas na propriedade para os bichos.
“Tenho um pomar que está todo aberto para eles, com figos e frutas cítricas. Peguem o que quiserem, mas, por favor, deixem as uvas em paz”, disse. Mesmo assim, ocasionalmente ele cede: “Às vezes, deixo que comam um pouco. ‘Tudo bem, vocês podem comer um pouquinho, se é disso que precisam.'”
A produção de vinhos de Berliner é simples. Ele esmaga todos os cachos de uvas e o suco fermenta sozinho, sem necessidade de adicionar leveduras. Ele usa uma pequena quantidade de dióxido de enxofre como conservante. E é basicamente isso.
Os chardonnays são puros, intensos e precisos. Os finos e acentuados cabernets são elegantes e mais florais e herbais do que os típicos de Margaret River. Os malbecs são adoráveis e complexos.
“Meu maior esforço é deixar a natureza guiar o rumo das coisas, e não meu ego. Temos sorte de ter a sabedoria e a generosidade da Mãe Terra ao nosso lado para nos ajudar”, concluiu.
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