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Experiência

Pão, truta e pudim: que tal cozinhar em um gêiser na Islândia?

New York Times
24/03/2018 20:00
Reykholt, Islândia – De pé sobre a lama do campo de gêiseres Myvatn no norte da Islândia, Kolla Ivarsdottir ergueu a tampa de seu forno de pão improvisado. O equipamento foi feito com o tambor de uma velha máquina de lavar roupa e enterrado na terra geotermicamente aquecida. Ao nosso redor, as poças de lama borbulhavam e soltavam colunas de vapor, alimentadas pelo calor de vulcões em formação.
Ingredientes frescos para uma festa ao ar livre em Reykholt. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Ingredientes frescos para uma festa ao ar livre em Reykholt. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Ivarsdottir, mãe de três crianças que vende seu pão em um mercado de produtos regionais, colocou a mão dentro do forno e retirou uma caixa de leite cheia do produto que havia acabado de assar, um pão de lava feito com centeio, doce e denso, produzido na terra quente daqui há séculos. Ela o cortou ainda quente em fatias finas. E avisou que é melhor comê-lo “completamente coberto com um pedaço de manteiga fria, tão grosso quanto sua mão, e uma fatia de salmão defumado da mesma espessura”. Ficamos só com o pão com manteiga, ainda uma combinação incrível.
“Muitas pessoas cozinham outras coisas desse jeito?”, perguntei olhando para as fontes naturais de calor a minha volta. “Não muitas. Algumas vezes um ganso que foi caçado, mas em geral apenas o pão de lava”, ela respondeu.
Achei surpreendente para um país com abundância de energia e voltado para a conservação que também é pioneiro da culinária nórdica moderna. Nesta era de slow- food e sous-vide, não seria possível imaginar uma refeição inteira feita somente em fornos geotermais naturais da Islândia?
No último verão, fiz mais do que imaginar: decidi testar minha ideia, uma missão que me levou a um grande passeio pelas riquezas culinárias do país. Quando liguei para o crítico de restaurante e exportador de peixes Kjartan Olafsson, minha fonte para todas as coisas relacionadas à Islândia, ele estava colhendo feno para os cavalos que levavam a ele e sua mulher em uma incursão na natureza selvagem. Nesta região em que o clima muda rapidamente e não há muitas terras aráveis, a sabedoria popular de colher feno enquanto o sol está brilhando é uma profissão de fé bastante arraigada. “Tenho a pessoa certa para você”, afirmou ele.
O respiradouro de um gêiser tampado. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
O respiradouro de um gêiser tampado. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Seguindo sua sugestão, eu imediatamente comecei uma viagem de oito horas dirigindo até Reykholt, uma vila no sudoeste. Embora tenha algumas das maiores paisagens da terra, a Islândia é um país pequeno; com 16 horas de carro é possível completar o circuito.
No dia seguinte, em Reykholt, conheci Jon Sigfusson, cozinheiro do Friedheimar, um restaurante que fica sob o mesmo teto da fazenda futurista coberta de mesmo nome. Cerca de um quinto dos tomates da Islândia são colhidos ali, de plantas imensas – tão altas quanto uma casa de dois andares –, sob lâmpadas douradas em estufas aquecidas geotermicamente. Todo o cardápio do restaurante, incluindo os coquetéis, tem os tomates como base.
Jon Sigfusson posa com ervas que colheu próximo ao respiradouro de um gêiser. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Jon Sigfusson posa com ervas que colheu próximo ao respiradouro de um gêiser. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Sigfusson e sua mulher, Asborg, voltaram a Reykholt, sua aldeia natal, depois de criar os filhos em Reykjavik. O casal queria um ritmo mais lento de vida. Ele não previu o sucesso desenfreado que o restaurante de tomates teria, mas ainda mantém um estilo de cidade pequena, mais em sintonia com a natureza. “Eu me mudei para cá porque quero a luz da lua, as estrelas, as auroras boreais”, contou Sigfusson.
Nesse espírito low-tech, nosso grupo – Olafsson, sua mulher, Karitas, minha mulher, Melinda e eu – criamos um plano para cozinhar no forno do gêiser local, uma característica de muitas cidades rurais da Islândia. Fizemos uma curta viagem de carro a partir do restaurante; o forno fica em uma ladeira com uma vista para sul e o oeste, um panorama de grandes rios e campos de lava. À distância, o vulcão ativo Hekla impera sobre a planície.
Jon Sigfusson colhendo ervas na Islândia. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Jon Sigfusson colhendo ervas na Islândia. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
“A água que estamos tomando caiu como chuva e a neve nessa geleira há 700 anos”, contou Sigfusson, apontando para o oeste, para as montanhas da Cordilheira Mesoatlântica.
Estávamos de pé na colina acima de Reykholt, no ponto onde o gêiser da cidade foi coberto de concreto com um telhado com acabamento cru, onde se via uma chaminé desconjuntada. Daquela fonte, a vila canaliza o vapor e a água quente que fornece parte das necessidades de calor e energia da comunidade moderna.
Parte do vapor também é desviado para o forno comunitário da vila, onde Sigfusson propôs que cozinhássemos nossa refeição. É uma maneira muito mais segura de cozinhar em calor geotérmico do que andar na ponta dos pés entre gêiseres em ebulição.
Jon Sigfusson, chef no Fridheimar, e Kjartan Olafsson, um crítico de gastronomia e exportador de peixes, colocam comida dentro de um forno geotermal comunitário. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Jon Sigfusson, chef no Fridheimar, e Kjartan Olafsson, um crítico de gastronomia e exportador de peixes, colocam comida dentro de um forno geotermal comunitário. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Ele abriu o forno do gêiser, apoiando a tampa com um mourão para que eu pudesse olhar lá dentro com segurança. O vapor que saía era tão quente quanto o de uma sauna e, no fundo do forno, ainda muito mais quente (cerca de 93 graus Celsius). O cheiro era um pouco sulfuroso, mas isso faz parte quando você mexe com o calor do centro da Terra.
Concordamos em nos reunir na manhã seguinte para cozinhar um cardápio local, incluindo trutas do rio Tungufljot, ali perto, e cordeiro islandês alimentado com capim, uma raça local que possui a mesma suculência salgada do famoso “agneau de pré-sale” francês, criado em prados com pântanos de água salobra.
Para a sobremesa, Sigfusson sugeriu “abrystir”, um pudim feito com o primeiro leite (o colostro, que é cheio de nutrientes) produzido por uma vaca leiteira. “Sempre que uma de nossas vacas dava cria, minha avó pegava parte daquele leite e colocava em uma chaleira dentro de uma panela com água quente. Era tão rico que rapidamente se tornava um creme brulê sozinho, sem ovos”, contou.
O dia seguinte amanheceu muito brilhante, com nuvens de algodão e uma brisa leve. “Primeiro vamos fazer a colheita. As ervas selvagens estão em todos os lugares“, disse Sigfusson.
Nosso pequeno grupo vagou pela encosta. O chão estava forrado de tomilho selvagem, com flores púrpuras do tamanho de uma bala de goma em meio a folhas saborosas e macias. Nas dobras e cavidades verdejantes, encontramos angélicas, planta com cheiro floral, quase de verbena e apenas um pouco amarga – que ia combinar muito com os sabores do cordeiro gordo. Sigfusson cortou dois talos de lúpulo selvagem para temperar o caldo, um uso novo, pelo menos para mim, do principal ingrediente da cerveja.
Cordeiro decorado com vegetais e ervas recém colhidas, pronto para cozinhar em um forno geotermal comunitário em Reykholt, na Islância. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times.
Cordeiro decorado com vegetais e ervas recém colhidas, pronto para cozinhar em um forno geotermal comunitário em Reykholt, na Islância. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times.
Com a porta traseira de sua caminhonete servindo como superfície de trabalho, separamos algumas romanescas da estufa em floretes e as jogamos dentro de uma panela de ferro. Cortamos couve-rábano em cubos, fizemos o mesmo com o pedaço de cordeiro defumado e salgado e adicionamos ervas, o lúpulo e creme. Enquanto trabalhávamos, o gêiser soltava sopros a cada sete minutos, e tínhamos que parar, recuando para fora do alcance do seu vapor quente e enevoado.
Uma truta da região do rio Tungufljot e outros ingredientes frescos. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Uma truta da região do rio Tungufljot e outros ingredientes frescos. Foto: Bara Kristinsdottir/The New York Times
Depois, colocamos o colostro nos ramequins que deixamos em banho-maria em uma forma com água quente. Então Sigfusson trouxe uma truta marrom que ele mesmo havia pescado. Recheamos a brilhante truta manchada com uma espécie de azedinha, angélica e cebolinhas, embrulhamos em papel especial (o papillote é a maneira ideal de cozinhar em um forno a vapor) e colocamos junto com o resto de nosso banquete.
Deixamos que o forno fizesse sua mágica e, algumas horas depois, voltamos para recuperar a nossa refeição. O pão poderia facilmente ter bastado como um almoço se não tivéssemos nos segurado um pouco. A truta estava macia e cheia de ervas. O pudim de leite ficou muito cremoso.
Mas a estrela do show foi o refogado de cordeiro. A carne era salgada e defumada, o molho cremoso enriquecido com os sucos da carne, a romanesca e a couve-rábano, e tudo banhado com os sabores do tomilho selvagem, da angélica e do lúpulo – que trouxe a doçura do estragão fresco.
No final da tarde, o sol iluminou a paisagem formada muito tempo atrás por fluxos de lava. Parecia um veludo verde-pálido ondulado pela brisa.
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