Experiência
De volta às panelas: como cozinhar em casa com mais frequência
Cozinhar está na moda. E não estamos falando de alta gastronomia ou da chamada gourmetização, que teve seu boom há alguns anos, quando chefs de cozinha ganharam os holofotes e passaram a inspirar novas gerações de cozinheiros. Após perder espaço para os serviços de delivery e os alimentos congelados, entre outras modernidades, as panelas estão voltando ao fogo em muitos lares. Seja para reunir amigos e familiares, buscar uma alimentação mais saudável ou economizar no fim do mês, cozinhar em casa parece estar se tornando mais frequente.
Não há nenhuma pesquisa científica que comprove isso, pelo menos por enquanto. Mas não é preciso muito esforço para constatar que há gente cozinhando por toda parte. Na TV, por exemplo: em uma passeada pelos canais você irá, inevitavelmente, se deparar com alguém ensinando uma receita. Há até mesmo canais somente para isso. O mesmo se aplica às redes sociais e seus videozinhos rápidos com preparos fáceis. Ou ainda: experimente digitar “receitas de cozinha” no Google; serão exibidos mais de 65 milhões de resultados.
Cozinhar é um ato inerente ao ser humano desde que ele descobriu o fogo e percebeu que, a partir dele, poderia incrementar o preparo e, consequentemente, o sabor dos alimentos. Porém, a mudança de hábitos e o avanço da indústria alimentícia fizeram com que, a partir da segunda metade do século 20, cozinhar em casa fosse se tornando menos frequente. Com uma oferta cada vez maior de alimentos pré-preparados ou entregues a domicílio, muitas pessoas passaram a investir mais tempo em outras atividades e menos na cozinha.
No Brasil, uma pesquisa divulgada em 2017 pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) deu indícios de que há, pelo menos, um princípio de mudança. E um dos motivadores foi a crise econômica. De 3 mil entrevistados em 14 cidades, 70% disseram ter mudado hábitos de compra ou consumo de alimentos por causa da crise. Desses, 74% citaram como mudança passar a “cozinhar mais em casa”. E tem mais: num comparativo entre 2010 e 2017, duas estatísticas chamam a atenção. Os entrevistados que disseram concordar com a afirmação “Com a vida que levo não tenho tempo para cozinhar em casa” caiu de 46% para 38%. Já a frase “Prefiro comprar alimentos semiprontos para não perder muito tempo cozinhando” teve concordância de 28%, contra 42% sete anos antes.
Modismo saudável
Questionada se estaria havendo um movimento no sentido de resgatar o preparo da própria comida, a professora Elizabetta Recine acredita que sim, porém, ainda no campo da idealização. “Há um acúmulo de informação e, sem dúvida, é um passo no sentido da valorização e do maior interesse com a alimentação”, diz. Coordenadora do Observatório de Políticas de Saúde Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília (UnB), ela faz uma ressalva: “Esse abandono do hábito de cozinhar ocorreu da classe média para cima. Nas camadas de menor poder aquisitivo, as mulheres nunca deixaram de cozinhar, mesmo acumulando jornadas duplas ou triplas.”
Mas com tanta gente cozinhando na mídia, seria o retorno à cozinha apenas um modismo? “Quando saúde entra na moda, a gente fica bastante feliz”, afirma Carmen Luciane Sanson Abourihan, professora do curso de Gastronomia da PUC Paraná, que vê uma preocupação real das pessoas com a qualidade da alimentação. Nesse cenário, os programas de TV e a internet são ferramentas importantes para desmistificar o ato de cozinhar. “As pessoas estão vendo que preparar uma refeição não é difícil e não toma tanto tempo. Além disso, as próprias empresas estão mais atentas ao consumidor, dando mais opções de alimentos não processados”, ressalta.
Comida de verdade
O escritor americano Michael Pollan é um dos mais conhecidos ativistas em favor do hábito de cozinhar em casa. Sua militância pela “comida de verdade” começou quando ele passou a estudar os efeitos da alimentação industrializada não apenas na saúde, mas também na cultura. “Penso que, quando deixamos as corporações cozinharem para nós, elas estão roubando uma das maiores satisfações na vida”, diz em seu site o autor de uma série de livros sobre alimentação saudável e criador da série Cooked, disponível na Netflix.
Satisfação. A palavra é repetida algumas vezes pela empresária Cleita Tavares Pereira para expressar o sentimento de cozinhar para a família e os amigos. “Para mim, cozinhar não é tanto para eu comer. É principalmente o ato de compartilhar que me motiva. Quando crio cardápios para receber visitas é quase como uma declaração de amor”, afirma. Mas nem sempre foi assim. Até três anos atrás, o mais comum era frequentar restaurantes com o marido e os dois filhos.
Foi quando resolveu fazer uma aula em uma escola de gastronomia, apenas para experimentar. Gostou tanto que virou frequentadora assídua da escola. “Eu não sabia fazer nada direito, era tudo mais ou menos. Hoje tenho um paladar mais aguçado, preparo os pratos de forma melhor e não me contento em comprar qualquer coisa”, revela. A paixão pela cozinha se estendeu ao filho mais velho, que estuda para ser chef de cozinha profissional e divide a cozinha com a mãe nos fins de semana.
Para a professora Elizabetta Recine, dividir as responsabilidades é justamente uma das mudanças culturais essenciais para que as famílias retornem à cozinha. “É fundamental acabar com a ideia de que cozinha é coisa de mulher. É coisa de mulher, homem, de todas as idades, profissões, classes sociais…é algo tão básico que precisa ser compartilhado. Se houver a divisão de responsabilidades, é plenamente possível preparar a maior parte das refeições em casa”, acredita. Pela pesquisa realizada no ano passado pela Fiesp, os brasileiros já estão no caminho. Quando questionados sobre a responsabilidade no preparo das refeições em casa, 41% disseram dividi-la. Em 2010, esse porcentual era de 33%.
Aulas e cursos para amadores ganham espaço
Se a overdose de receitas culinárias na TV e na internet pode dar margem à interpretação de que as pessoas estão mais interessadas em ver do que aprender a cozinhar, um outro movimento não deixa dúvidas. É crescente a oferta de cursos de gastronomia, não apenas voltados para quem quer se tornar cozinheiro profissional. Aulas show e cursos rápidos têm sido opções mais acessíveis para quem deseja apenas adquirir um pouco mais de conhecimento para incrementar o cardápio em casa e impressionar as visitas.
Em Curitiba, uma das escolas que se atentou a esse público foi o Espaço Gourmet. Todas as semanas são ofertadas aulas de aproximadamente três horas, voltadas para os mais diversos tipos de preparos, da cozinha trivial a sobremesas incrementadas. “De uns três anos para cá, nota-se uma preocupação com a comida de verdade. A busca por uma melhor alimentação ajudou esses cursos a ter um salto”, conta a coordenadora de cursos extensivos da escola, Caroline Lucas.
Além dessas aulas, a escola também oferta um curso de chef de cozinha dividido em módulos, voltado tanto para quem quer cozinhar em casa quanto quem pretende se profissionalizar. “Mas a maioria dos alunos cozinha por hobby”, observa Caroline.
Esse é o caso do economista Maurício da Rocha Ceschini, que concluiu recentemente o primeiro módulo do curso e já iniciou o segundo. Ele conta que até alguns anos atrás “quebrava o galho” na cozinha. Foi assistindo a programas de culinária na televisão que veio o interesse em se aprimorar, despertado de vez quando fez uma aula de panificação. Hoje, a diferença é sentida não apenas na qualidade do cardápio. “Mudou muito a minha organização e o gerenciamento dos produtos. Aprendi a evitar o desperdício e não jogo tanta comida fora”, diz o economista, que, com a esposa grávida, assumiu de vez o posto de cozinheiro da casa.
Além da saúde
Quando se fala nos benefícios de cozinhar em casa, a primeira coisa que vem em mente é a saúde. O que não é difícil de justificar, afinal estudos já comprovaram a relação direta entre o consumo de alimentos ultraprocessados (como congelados, macarrão instantâneo e refrigerantes) e o aumento da obesidade. Além disso, esse tipo de produto em geral contém quantidades excessivas de sal, gorduras e açúcares, o que não é nada benéfico para o corpo humano.
As vantagens de cuidar da própria comida, no entanto, vão muito além da saúde física. A coordenadora do Opsan, Elizabetta Recine, lembra que a culinária está diretamente ligada à “identidade, a forma de se relacionar, a sociabilidade, o resgate de memórias e valores”. “Cozinhar é uma forma de expressão individual e coletiva. É uma manifestação cultural que tem o aspecto de pertencimento, é um elemento de bem viver como um todo, não só biológico”, destaca.
A professora Carmen Abourihan, da PUCPR, lembra que, no passado, as refeições eram momentos de paz e troca de experiências. “O preparo da refeição pode ser uma terapia, uma demonstração de amor ao outro. Mesmo na correria do dia a dia, com o trabalho e os estudos, é plenamente possível investir tempo em uma boa refeição.”
Para o escritor Michael Pollan, há uma cadeia muito maior envolvida nessa mudança de comportamento. “À medida que deixamos corporações cuidar da maioria das nossas refeições, nossa agricultura continuará sendo dominada por gigantes da monocultura de grãos e fábricas de derivados de animais”, frisa. “A decadência da cozinha caseira de todos os dias não prejudica apenas a saúde de nossos corpos e nosso solo, mas também nossas famílias, nossas comunidades e a noção de como comer nos conecta ao mundo.”
Para gostar de cozinhar
Se você tem vontade de cozinhar em casa, mas mal sabe fritar um ovo, não se desespere. Cozinhar não é nenhum bicho de sete cabeças. Veja algumas dicas:
Converse com amigos cozinheiros
A dica é do escritor Michael Pollan, válida para familiares, colegas de trabalho ou vizinhos. “Pergunte à pessoa se você pode acompanhá-la e seja seu aprendiz. Ela ficará feliz em ajudá-lo e você irá aprender assistindo e auxiliando”, garante.
Busque vídeos na internet
Outro conselho de Pollan que pode ser bastante valioso é usar e abusar da internet como aliada. “Se você não sabe como preparar algo, busque no YouTube. Há grandes chances de encontrar um vídeo passo a passo da receita.”
Compre alimentos pré-preparados
Nos supermercados já é possível encontrar itens como frutas, legumes e verduras já cortados em pequenas porções. Além de poupar tempo e facilitar o preparo das refeições, ajuda a evitar o desperdício.
Dê chance a novos sabores
Sabe aquele alimento que você provou uma vez e não gostou? Que tal dar uma segunda chance? “Vivenciar o sabor dos alimentos é educar o paladar para vários sabores. De repente, um preparo diferente vai agradar”, aconselha a professora Carmen Abourihan.
Tire as crianças da sala
Para quem já cozinha e tem filhos, leva-los à cozinha pode ser saudável e divertido. “Dê oportunidade para que elas conheçam texturas, formas, preparações. Faça com que criem intimidade com a alimentação e o preparo”, recomenda a professora Elizabetta Recine.
LEIA TAMBÉM: