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‘Homo culinarius’: como a cozinha transformou a nossa evolução, alimentação e cultura
Foi com formas rudimentares de preparar a comida após a caça que começou a história do ‘homo culinarius’, como alguns pesquisadores nos definem nos dias de hoje.
É o que mostrou a bióloga e neurocientista Suzana Herculano-Houzel durante uma palestra na manhã deste sábado (27) no simpósio FRU.TO, um seminário sobre alimentação promovido pelo chef Alex Atala, do premiado restaurante D.O.M. desde a última sexta-feira (26) em São Paulo.

A brasileira, que leciona na Universidade Vanderbilt (EUA) e é uma das neurocientistas mais importantes do mundo (pelo seu campo de pesquisa de neuroanatomia comparada), mostrou como o cérebro humano se desenvolveu desde o tempo das cavernas, e ainda fez uma correlação entre a inteligência dos primatas e a nossa.
De acordo com ela, o cérebro humano é apenas um cérebro de primata, sem nada de extraordinário. A diferença é de como o córtex cerebral foi se desenvolvendo com o passar dos anos, com as atividades cognitiva. O que nos transformou de meros caçadores de comida crua a especialistas em cozinhar os alimentos e torná-los mais saborosos.
O trabalho que ela vem desenvolvendo há 14 anos mostra que o cérebro humano é hoje o mais desenvolvido entre todos os seres vivos, com uma capacidade três vezes maior do que os primatas. “Não porque nós somos melhores que eles, possuímos mais inteligência do que eles. Mas porque fomos trabalhando nossa capacidade cognitiva”, explica a neurocientista mostrando um experimento feito com primatas.
No exemplo mostrado por Suzana, um primata precisava fazer uma correlação de números em sequência apresentados em uma tela. De pouco em pouco, o primata foi conseguindo memorizá-los e montar sequências numéricas que fazem sentido, não apenas aleatoriamente. Ou seja, “a capacidade está lá no cérebro, basta apenas ser trabalhada”, conta.
O córtex cerebral humano possui 16 bilhões de neurônios, contra 6 bilhões dos chimpanzés e 5,6 bilhões dos elefantes. Ou seja, o cérebro humano tem três vezes mais neurônios que seu parente mais próximo. É o que ela chama de “supercérebros”.

Mas, o que nos fez ter o cérebro tão mais desenvolvido que o dos primatas? Suzana explica que “a partir de uns dois milhões de anos, o homem começou a fazer objetos que pudessem transformar a comida em algo interessante para comer e mais fácil de ser digerida”. Isso também fez uma barreira que impediu que os primatas ganhassem mais neurônios no córtex: o consumo de cada vez mais calorias para alimentar um órgão que demanda tanta energia.
Importância do fogo
A neurocientista diz que, diferentemente dos primatas, que gastam oito horas seguidas em busca de comida para alimentar seus cérebros rudimentares, os humanos precisaram otimizar esse tempo, para que comessem mais com uma melhor qualidade em menos tempo.
Ela conta que “atualmente, nós gastamos duas horas por dia comendo. Se tivéssemos o mesmo hábito dos primatas, gastaríamos 9 horas com este ato”. A descoberta do fogo, e de como domá-lo, foi de extrema importância para isso.
E para dar a energia que o cérebro precisou para evoluir, se desenvolver e ter a capacidade de trabalhar e pensar, o humano descobriu na gordura a fonte necessária. “Além de ser algo prazeiroso de se consumir, ela sacia a fome rapidamente”, diz Suzana Herculano, afirmando ainda que o prazer dos carboidratos trouxe uma consequência aos humanos: o consumo maior do que o necessário.
Ou seja, para ela, o ser humano teve a capacidade de descobrir como comer melhor, preparar o alimento, mas também que, se consumir em excesso, pode ter problemas de saúde.
Cozinha e desigualdade
Além disso, quando o homem aprendeu a arte de cozinhar, que o fez humano, também o colocou no topo da cadeia alimentar. E isso tem sido devastador na opinião da professora de história e cultura da gastronomia Solange Demeterco. De acordo com ela, “isso tem implicado em relações de poder que acabam gerando desigualdades, porque a alimentação também é uma questão geopolítica”.
Ela explica que quando pensamos o futuro do ‘homo culinarius’ precisamos nos perguntar para onde queremos ir.”Queremos continuar a deixar que o tempo ou a praticidade sejam os fatores definidores dos nossos hábitos e padrões alimentares, e da forma como lidamos com o meio ambiente? Vamos continuar a negar que comida é cultura e política? Que hoje de certa forma se decide, seja por ações ou por omissão, quem vai ter acesso a alimentos de qualidade ou o direito a ter o gosto e a comida em seu cotidiano? Quem vai comer?” questiona ela sobre como os governos e as empresas vão tratar da questão alimentar no futuro.
A preocupação é legítima em um mundo em que, de acordo com a Organização das Nações Unidas, a população do planeta irá alcançar os 8,6 bilhões de habitantes até 2030.
Para a professora Solange Demeterco, o futuro da alimentação passa pela reflexão de como tratamos a comida. “É preciso retomar a ideia de que agregamos valores ao que comemos, valores simbólicos, inclusive afeto”, explica.
Em um de seus livros, “Doces Lembraças”, Solange fala sobre como um simples doce, por exemplo, pode ter esse apelo necessário e confortante que a comida. Ela diz: “isso e cultura”.
Já a neurocientista Suzana Herculano afirma: “cozinhar é uma tecnologia, é para ser usada certa, por todos e para todos”.