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“Desperdício é uma falha na imaginação”, diz chef inglês que já foi artista de rua
“Por que existe o desperdício se ele não é algo da natureza?” Foi com esse questionamento que o chef Douglas McMaster começou uma das palestras do segundo dia do seminário Fruto, realizado neste final de semana em São Paulo, com transmissão on-line. Australiano radicado na Inglaterra, McMaster comanda um restaurante em que absolutamente tudo é reutilizado e reciclado, nada vai para o lixo.
Aberto há cinco anos na cidade inglesa de Brighton, o Silo é um restaurante tido como de ‘desperdício zero’, em que tudo o que entra se torna alguma coisa nova depois de usado. E isso vale tanto para a comida que sobrou do prato do cliente como para utensílios como garrafas de vinho vazias, guardanapos usados e embalagens plásticas.
Douglas McMaster explica que essa conscientização não ocorreu à toa. O pouco dinheiro que tinha precisava ser valorizado, e isso passava por aproveitar ao máximo cada coisa que comprava, de plástico que sobrou dos materiais da construção do restaurante às cascas de vegetais e cabeças de peixe.
“Eu era um artista de rua na Austrália que fazia esculturas e intervenções urbanas com restos de materiais diversos, até que um dia alguém veio e me perguntou se eu não queria ser um chef de cozinha. E eu simplesmente respondi ‘por que não?’” conta ele sobre como começou a história do Silo.
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De acordo com o chef, a ideia central de tudo é transformar um problema em uma solução, com inteligência, criatividade e determinação. É por isso que ele considera que o desperdício é uma falha na imaginação, quando o ser humano evoluído não consegue pensar em maneiras de dar um novo uso a coisas que iriam para o lixo.
“Na natureza não existe desperdício, e tudo o que temos vem da natureza. Ou seja, tudo tem uma solução”, afirma Douglas McMaster, que criou um sistema completo de compostagem e de reciclagem em seu restaurante.
Tudo se transforma
Durante a palestra no seminário Fruto, McMaster mostrou diversas soluções que desenvolveu no Silo para que as sobras de comida, embalagens e vidro ganhem novos usos. São três linhas de trabalho adotadas por ele no restaurante:
1- Negociação direta – compra de alimentos direto do produtor, sem o intermédio da indústria ou uso de produtos processados. O chef ou os funcionários do restaurante vão diariamente às chácaras e fazendas próximas de Brighton para adquirir os ingredientes do dia, o mais fresco possível. Conhecem os produtores e suas famílias, trocam experiências e ajudam no desenvolvimento local.
2- Preparação de alimentos inteiros – preparar a comida inteira do zero, como cortes de animais que ele compra inteiro, o peixe direto do oceano, o leite e o creme de leite direto do produtor, os cogumelos que nascem das sobras da borra de café. Tudo é feito no restaurante, nada é industrializado.
3- Compostagem – todas as sobras dos pratos dos clients vão para uma composteira e depois voltam para a natureza na forma de adubo. Em um dos exemplos dados, McMaster contou que certo dia sentiu um aroma cítrico de uma das misturas e decidiu plantar cenouras com ela. O resultado foi “a melhor cenoura que eu já comi, com um leve toque de limão”, brincou.
Há ainda os preparados de sobras dos alimentos da própria cozinha, como o kimchi e o kefir artesanais, o missô de cascas vegetais e o molho dos restos de peixe. A criatividade do chef não parou por aí.
Além de todas as sobras, Douglas McMaster também usa alimentos controversos em sua cozinha. Assim como a formiga saúva um dia quase foi erradicada do Brasil, como explicou o agrônomo Vinícius Lages em uma palestra na sexta-feira, o chef usa duas espécies invasoras de crustáceo e de vegetal para preparar pratos no Silo.
“A Inglaterra sofre com um crustáceo semelhante a uma lagosta que destrói tudo o que há na frente. O governo tentou erradicar, mas nós a transformamos em comida. Há ainda uma planta invasiva trazida do Japão que provocou um desequilíbrio no ecossistema, e o governo pagava as pessoas para envenená-las. Eu as uso na cozinha, criando um prato criativo. Nós comemos o problema”, explica sob um olhar curioso.
Plástico e vidro
As poucas embalagens que entram no Silo também ganham um novo destino. A começar pelas garrafas de vinho – biodinâmicos e naturais – que seriam jogadas fora após o consumo. McMaster criou um sistema que tritura os recipientes e os transforma em areia que será usada depois na horta ou em alguma decoração.
Os guardanapos de papel também são 100% recicláveis e biodegradáveis, voltando para a natureza após o uso.
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Por outro lado, o chef baniu completamente o plástico em seu restaurante, e o que sobrou de embalagens da época da construção foi transformado em curiosos pratos, ainda em uso.
“Precisamos considerar a natureza em todas as decisões que tomamos no nosso dia a dia, e não apenas em nós mesmos. Natureza significa desperdício zero, pois nela nada sobra”, finaliza Douglas McMaster.
Até a metade do ano, o chef vai lançar um livro contando a história de desperdício zero do Silo e como os sistemas produtivos de comida precisam ser repensados para um futuro sustentável.