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Bom Gourmet

Em busca da verdadeira bouillabaisse, um dos clássicos da gastronomia francesa

Elaine Sciolino, The New York Times
27/08/2019 17:00
Marselha, França – Nesta antiga cidade portuária francesa no Mediterrâneo, não há como escapar do prato de peixe conhecido como bouillabaisse.
Ao redor do Vieux Port, restaurantes com menus multilíngues atraem turistas com a promessa de um sabor autêntico do prato típico da cidade. Um deles anuncia em luzes brilhantes uma “bouillabaisse royale”, com lagosta; outro oferece uma “petite” a preço baixo. Um terceiro criou um “milkshake de bouillabaisse”, enquanto mais um propõe um “hambúrguer bouillabaisse”: filé de peixe no pão acompanhado de sopa de peixe e batatas fritas.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
As bancas de jornal vendem cartões-postais que vêm com uma receita do prato em francês e em inglês. As lojas oferecem frascos do caldo concentrado e rouille, uma maionese com alho e azeite e uma mistura de açafrão e outras especiarias, usada para intensificar a sopa.

Um clássico?

Na verdade, poucos marselheses nativos comem bouillabaisse, e certamente só em casa, nunca em um restaurante. Muitos riem daqueles que vêm aqui e querem o prato. A cozinha mais inventiva da cidade atualmente, dizem, é a pizza preparada em food trucks e o cuscuz servido em restaurantes do Norte da África.
A bouillabaisse às vezes parece tão antiquada quanto o coq au vin ou o blanquette de veau. Aqui, e em toda a França, muitos dizem que é difícil encontrar uma versão clássica do prato, que é algo entre uma sopa e um ensopado.
Mas há também um boato de que a bouillabaisse sobrevive, especialmente nesta cidade, que este ano celebra sua comida com uma iniciativa chamada Marseille Provence Gastronomy 2019, que inclui aulas de culinária, jantares, degustações de vinho, exposições de arte e mercados. Para marcar a ocasião, um grupo de alunos do ensino fundamental pintou dois grandes murais “bouillabaisse” ao ar livre, com os peixes usados para preparar o prato.
Portanto, quando decidi procurar e saborear a coisa real, vim para Marselha.
A busca não foi fácil, pois a bouillabaisse está cercada de mitos, tradição e polêmica gastronômicos.

Origem da bouillabaisse

A origem do prato é lendária. Uma delas diz que Vênus, a deusa romana do amor, inventou a bouillabaisse para fazer seu marido, Vulcano, dormir; assim, ela poderia ficar com Marte, seu amante. Muitos historiadores de alimentos especulam que a bouillabaisse é descendente da kakavia, uma sopa tradicional dos antigos gregos, que colonizaram Marselha por volta de 600 a.C.
O prato se desenvolveu ao longo dos séculos como uma refeição na qual os pescadores pobres usavam várias espécies de peixes e criaturas marinhas – a maioria delas sem muita saída por serem feias – que iam das docas direto para o caldeirão de ferro para alimentar a família. No fim do século 18, uma versão foi servida em restaurantes.
Em 1966, o crítico de gastronomia do The New York Times, Craig Claiborne, chamou a bouillabaisse de “um prato que sempre se presta à controvérsia”. O debate sobre o que constitui uma bouillabaisse real tornou-se tão feroz que um grupo de 11 restaurateurs locais elaborou a Carta Marselhesa da Bouillabaisse na década de 1980, codificando os ingredientes e o preparo permitidos.

Onde comer

Nessa visita, fiquei longe da área portuária, onde comi minha primeira bouillabaisse medíocre anos atrás.
Evitei também a interpretação desconstruída, elaborada e cara do restaurante com estrela Michelin de Gérald Passédatle, o Petit Nice, na costa, a cerca de três quilômetros de distância. A “Ma Bouille Abaisse”, como ele a chama, tem três partes: uma entrada de marisco cru, uma seleção de pedaços de filés de peixe clássicos cobertos por um caldo claro com infusão de açafrão e, finalmente, uma seleção de peixes do mar profundo em uma sopa grossa decorada com pequenos caranguejos. Com a sobremesa, o preço da refeição chega a 250 euros (US$ 280 ou cerca de R$ 1,2 mil na cotação de agosto de 2019).
O sucesso veio quando conversei com um amigo que conhece a área. Seus amigos que vivem ao longo da costa sugeriram outro restaurante e falaram com o chef, que só ocasionalmente faz bouillabaisse, mas que concordou em prepará-la para nós.
Em um domingo quente de junho, dirigi durante 40 minutos rumo ao leste ao longo da estrada costeira, até a pequena aldeia pesqueira Les Goudes, o ponto mais distante de Marselha antes de você chegar às enseadas conhecidas como calanques. Não há correios nem bancos, e a pequena igreja católica raramente celebra missas.
Grupos de pequenos chalés, alguns deles não mais do que barracos, agarram-se às encostas. Alguns foram construídos antes dos códigos de construção e funcionam com a fiação elétrica exposta. Muitas famílias vivem aqui há gerações.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
O terraço ao ar livre do L’ Esplaï du Grand Bar des Goudes está situado nas rochas, com vista para um pequeno porto pesqueiro; é o lugar aonde os marselheses vêm para um longo almoço de domingo.
O restaurante estava tomado pelo cheiro de alho e pelas conversas barulhentas – algumas pessoas até mesmo cantavam. (Não estamos em Paris, onde todos falam baixo.) Daqui, a clientela pode ver o porto principal, do outro lado da baía, onde os grandes navios de cruzeiro aportam.

Como é feita

O chef, Christophe Thullier, preparou sua bouillabaisse da maneira clássica. Ele fez um caldo usando peixes minúsculos, erva-doce, tomate, uma mistura de especiarias, azeite e água. Ferveu o caldo furiosamente por 20 minutos até engrossar, e então o deixou em fogo baixo antes de passá-lo por uma peneira.
Pelo menos cinco tipos de peixe ficaram marinando por várias horas em vinho branco, azeite, tomilho, alecrim, páprica, cúrcuma e muito alho e açafrão.
Parte do ritual da bouillabaisse é a apresentação do peixe marinado antes de ser cortado e jogado no caldo fervente “à la minute” – no último minuto. A palavra bouillabaisse deriva do provençal bouï-abaisso, que significa “quando ferver, abaixe o fogo”.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
Foto: Elaine Sciolino / The New York Times.
Eric Para, o coproprietário do restaurante, trouxe um prato enorme de peixe para a mesa, incluindo Saint Pierre; vive, uma pequena criatura como uma enguia, com espinhos venenosos; galinette; grondin rouge; congre; rouget; e as variedades brancas vermelhas e magras do rascasse, uma criatura marinha feia e espinhenta conhecida como peixe-escorpião, imprescindível em toda bouillabaisse que se preze. (“Sozinho, não é particularmente bom, mas é a alma da bouillabaisse”, afirmou o grande escritor de culinária Waverley Root.)
O caldo foi servido primeiro, com fatias torradas de baguette, dentes de alho cru e molho rouille. A tradição aqui é esfregar o alho cru no pão, besuntá-lo com quantidades generosas de rouille e jogá-lo no caldo. Em seguida, veio o segundo prato: os filés de peixe recém-cozidos com um pouco de caldo sobre eles.
A sopa, opaca e com cor de lama, era pesada, viscosa e arenosa, com pequenos nacos de peixe se depositando no fundo da tigela.
“Isso não é para os fracos”, disse um dos outros comensais. “Esse não é um prato apreciado pelos jovens.”
Para concordou. “É um gosto adquirido, especialmente quando você o faz da maneira correta. Francamente, para uma refeição especial em casa, prefiro um côte de boeuf [prime rib]”.
Ele foi elogiado por Passédat, do Le Petit Nice, que é conhecido como o “padrinho” da iniciativa alimentar anual em Marselha e o maior fã da bouillabaisse. “Ele é a estrela da região e um artista”, disse Para. “Não somos artistas aqui.”
O prato será sempre melhor em seu lugar de origem, e os puristas da bouillabaisse sempre acreditaram que há uma conexão mística entre o prato e a cidade.
“Sinto que parte de Marselha está na bouillabaisse”, disse Julia Child em seu programa de televisão “The French Chef” em 1970. “Você pode de alguma forma sentir o gosto, a cor, a emoção do velho porto.”
Talvez isso explique por que, por mais difícil que seja encontrá-la, não é provável que a bouillabaisse desapareça.
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