Bom Gourmet

Elas decantam o futuro: mulheres que transformam o mundo do Vinho no Brasil

Anderson Hartmann, com Laura Tedesco Bressan
08/08/2025 12:00
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Da produção ao enoturismo, mulheres estão transformando o cenário do vinho no Brasil | Foto: arquivo pessoal/Graziela Boscato

O aroma de um vinho carrega muito mais do que notas de frutas, especiarias e madeira. Ele carrega histórias. No Brasil, e especialmente no Rio Grande do Sul, essas histórias, por muito tempo, foram contadas e conduzidas majoritariamente por homens. Mas essa paisagem está mudando. Hoje, cada vez mais, mãos femininas seguram taças, dirigem vinícolas, assinam rótulos, comandam degustações e imprimem um novo jeito de pensar e viver o vinho.
Não se trata apenas de ocupar espaço, mas de transformar a narrativa. Ao lado de uma técnica impecável, essas mulheres trazem consigo a sensibilidade de quem entende que o vinho é, antes de tudo, um convite à experiência. Do campo à taça, elas misturam tradição e inovação, mantendo raízes profundas e, ao mesmo tempo, ousando experimentar novas combinações, formatos e formas de encantar o consumidor.
Nesta reportagem especial, o Bom Gourmet apresenta cinco histórias que ilustram essa revolução silenciosa — mulheres que, cada uma à sua maneira, estão decantando o futuro do vinho no Brasil. Da presidência da Associação Brasileira de Sommeliers à gestão de vinícolas, do comando de experiências enoturísticas à criação técnica na enologia, todas compartilham um mesmo ingrediente: a coragem de imprimir identidade própria em um universo ainda em transformação.

Liderança que inspira

Caroline Dani é Gestora Executiva da ABS-RS, entidade formadora de sommeliers e profissionais do vinho | Foto: divulgação/ABS-RS
Caroline Dani é Gestora Executiva da ABS-RS, entidade formadora de sommeliers e profissionais do vinho | Foto: divulgação/ABS-RS
Conduzir a Associação Brasileira de Sommeliers do Rio Grande do Sul (ABS-RS), principal entidade de sommeliers do estado, é, para Caroline Dani, um ponto alto em uma trajetória que se entrelaça com a própria história do setor de vinhos finos no Brasil.
— Me sinto muito privilegiada de poder estar à frente da ABS-RS nesse momento. É um setor no qual eu nasci, cresci, vi muitas dificuldades e hoje vejo também conquistas. Liderar agora, com condições e capacitações que construí ao longo da vida, é algo que me realiza profundamente.
Para ela, a presença feminina não foi uma concessão do mercado, mas uma conquista forjada em mérito.
— As mulheres ocuparam esse espaço porque fizeram a diferença. Elas foram protagonistas em vários processos, conquistaram esse lugar por mérito, por capacidade, por conhecimento. O setor não escolheu abrir para as mulheres. Elas abriram caminho.
O olhar feminino, segundo Caroline, transforma a experiência do vinho em algo mais profundo e humano.
— A mulher traz humanização, cuidado, um olhar estético e sensível que é essencial hoje, especialmente para a nova geração de consumidores. Esse olhar é próprio da mulher e tem ajudado muito o setor a evoluir.

A ousadia no comando

— Começamos com cinco espumantes, e desde o início inovamos no blend. Nosso rótulo mais vendido e premiado, o Amitié Brut, já nasceu com 60% de chardonnay e 40% de malvasia, uma uva pouco divulgada aqui na região. Isso foi uma quebra de paradigmas.
À frente da Amitié Espumantes e Vinhos, Andreia Gentilini comanda um dos projetos mais inovadores do mercado nacional. Desde a fundação da vinícola, em 2018, junto à sócia Juciane Casagrande D’oro, ela apostou em um modelo de negócio diferente, focado em parcerias estratégicas e ousadia na criação dos espumantes.
A proposta da marca é levar a sensibilidade para cada etapa da produção e do relacionamento com o consumidor.
— O olhar feminino está em tudo que fazemos. Nos rótulos, nos detalhes. Nosso espumante Amitié Nature, por exemplo, vem com uma tampinha que vira colar. A ideia é que a marca siga com o cliente, se torne um diferencial afetivo.
Entre os projetos mais ousados está o Amitié Colheitas, uma linha de vinhos vinificados em cinco regiões do Brasil.
— O Brasil é o único país onde se colhe uvas nas quatro estações. Decidimos explorar isso, lançar uma colheita de verão, outono, primavera e inverno. É esse olhar para os terroirs e para o que temos que buscamos imprimir na marca.

A ponte entre a taça e o público

Com mais de duas décadas dedicadas à gastronomia, Roselaine da Rosa atua no universo dos vinhos desde 2013. Hoje é sommelière-chefe do Benjamin Osteria Moderna — reconhecido como o melhor restaurante do sul do Brasil pelo prêmio Prazeres da Mesa. Formada em Direito, alia o conhecimento técnico à paixão pelo serviço, traduzindo rótulos e harmonizações em experiências únicas para os clientes.
Com experiência no salão e uma escuta aguçada para o que o cliente busca sentir, Roselaine vê na atuação da sommelière algo que vai além da técnica.
— Todo profissional do vinho com conhecimento técnico terá o seu diferencial. Mas acredito que a diferença está na capacidade de transformar algo técnico em uma experiência lúdica e inesquecível. Quando, no primeiro gole, tudo o que foi dito se traduz no vinho, a experiência se torna única.
Para ela, cada serviço é uma chance de conexão emocional. E essas conexões são inúmeras.
— Já atendi clientes que trouxeram um Château Margaux do ano do próprio nascimento para celebrar o aniversário. Em treinamentos com colegas, vejo a surpresa ao identificarem aromas e sabores pela primeira vez. Meu papel é sempre buscar entregar a experiência que faz sentido para aquele cliente, naquele momento.

Transformando vinho em destino

No comando do Spa do Vinho, no Vale dos Vinhedos, Deborah Villas-Bôas Dadalt aposta em uma imersão sensorial que transforma o vinho em uma lembrança afetiva.
— Um bom vinho traz testemunhos de sua origem. Para ampliar a percepção do visitante, usamos o ambiente como ponte sensorial entre nosso terroir e os sentidos. Criamos espaços que envolvem completamente, desde a temperatura da luz até a trilha sonora.
A proposta é que o rótulo carregue o DNA do lugar.
— A vinha molhada de orvalho, o aroma de uvas frescas, a neblina da noite. Tudo isso inspira nossa hospitalidade. Quando a pessoa abre aquela garrafa meses depois, revive o instante vivido aqui. Isso fideliza e cria conexões profundas.
Transformar um rótulo em destino exige, segundo ela, autenticidade.
— Um vinho só se torna representativo de um lugar quando traduz a essência do seu terroir. Se isso é alcançado, o visitante faz questão de levar consigo memórias afetivas “engarrafadas”. É quando o ciclo se completa: o vinho leva ao destino, o destino encanta, e a lembrança segue viva.

Técnica e sensibilidade

Graziela Boscato, enóloga, dedica-se à produção de vinhos e espumantes na Serra Gaúcha | Foto: arquivo pessoal
Graziela Boscato, enóloga, dedica-se à produção de vinhos e espumantes na Serra Gaúcha | Foto: arquivo pessoal
Graziela Boscato transita entre ciência e arte ao comandar a vinificação em sua vinícola. Romper padrões faz parte do seu trabalho desde o início da carreira.
— Ser mulher, enóloga, sommelière e conduzir uma vinícola é o maior atrevimento que já cometi. Em um setor ainda predominantemente masculino, romper padrões é quase mandatório.
A escolha por fugir do varietal óbvio e apostar em blends foi o caminho para criar uma identidade própria.
— Estudo e combino castas, alterno safras, vario o estágio de maturação. Isso me permite chegar ao vinho que imagino. O resultado é um vinho único, que às vezes é reproduzido, outras vezes não.
Na criação, ela identifica um traço feminino: a atenção aos detalhes.
— É como bordar: cada ponto importa. Cuido com atenção do cultivo, da colheita, da vinificação, do amadurecimento e do envelhecimento. Essa soma de pequenas escolhas se reflete na complexidade da taça.
As histórias dessas cinco mulheres mostram que o vinho brasileiro vive um momento de renovação — não apenas de mercado, mas de narrativa. Com coragem para inovar, respeito pela tradição e sensibilidade para contar histórias, elas estão moldando um futuro em que o vinho será, cada vez mais, um diálogo plural.
E, assim como um bom vinho precisa de tempo para revelar seus aromas e sabores, essa revolução silenciosa também está apenas começando