Bom Gourmet

É Pro Meu Aniversário!

A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa, com André Bezerra e convidados
24/10/2025 16:40
Thumbnail

Tia Vera, Iara Bezerra (minha mãe), Tia Evanir, Tia Lígia e Tia Dedé (de branco na frente ).

Por André Bezerra*
Minha irmã detestava quando julho chegava. Um mes antes da data do meu aniversário, em agosto, tudo o que entrava de gostoso na despensa da nossa casa, eu proclamava: “É pro meu aniversário!” Crianças costumam ser persuasivas, um tanto irritantes e, às vezes, um pouco cruéis. Portanto, quando a Chris queria abrir uma lata de leite condensado, por exemplo, era melhor que ela me consultasse antes. Não observar esta regra ao longo de julho poderia resultar numa coleção de papéis de carta extraviada, numa pilha de revistas Capricho rabiscadas, suas capas recortadas.
Adolescente, eu não era uma peste, propriamente, mas um artista. E já dava claros sinais de que me tornaria um gourmand. Desde cedo, a vida transcorria mais animada na cozinha ou em volta da mesa. A melhor parte das festas de aniversário eram justamente as horas que as antecediam. O dia começa melhor quando despertamos com o aroma de bolo assando, de um empadão saindo do forno. Quem não gosta de entrar na cozinha ou na copa e ver uma mesa posta com tudo que a gente mais gosta? Pão de queijo quentinho, suco de laranja, bauru feito na hora, omelete e polenghinho? O colorido das frutas e o aroma de café fresco, passado na hora, o chocolate quente fumegando na caneca, mingau de aveia e um docinho.
Depois do café, eu ia pra escola com a minha irmã. Até hoje não sei se a alegria dela era por me ver feliz ou de alívio porque o suplício de julho estava terminando. Quando voltávamos para almoçar, o cheiro do estrogonofe da minha mãe nos colhia ainda na rua. A culinária da Dona Iara sempre foi muito perfumada e ela prepara o meu prato favorito como ninguém. Na verdade, são dois: estrogonofe e charuto de repolho. Anos transcorridos, quando saí de casa e fui morar com um amigo, estrogonofe foi a primeira receita que a Mãe me ensinou à distância, por telefone. Acertei, ficou delicioso, mas deixei o arroz queimar.
Voltando novamente nos anos, para as festas do meu aniversário, as minhas tias costumavam participar dos preparos. Lembro de um dos anos quando aconteceu na casa da Tia Dedé, irmã da Mãe e minha madrinha de batismo. Entrei na cozinha e lá estavam as duas esticando algo sobre a pia, como se fosse um grande elástico sem forma definida. Cheirava a açúcar derretido. Elas, então, enrolaram como se fosse uma serpente e passaram uma tesoura para mim e outra para o meu primo mais novo, o Bruninho. A nossa tarefa, então, era picotar a “serpente” em pedaços do tamanho de um polegar. Eram as balas de côco. Quem nunca viu uma bala de côco ser preparada em casa, está perdendo. O aroma do açúcar derretendo na panela remete ao de uma calda de pudim ou do algodão doce. Aquele conteúdo é derramado da panela sobre uma superfície fria e lisa, como o granito ou mármore de uma pia. Conforme esfria, ele vai ganhando espessura. Esta é a hora de esticá-lo e enrolar até a largura de uma bala. Neste momento, ele é um puxa-puxa daqueles que grudam nos dentes e vão derretendo na boca. Eu e o meu primo comíamos boa parte da receita antes de terminarmos de picotar. Finalmente, embrulhávamos as balinhas nesta espécie de guardanapos coloridos, com franjas. Tudo arranjado, compunha a decoração da mesa, entre brigadeiros e “beijinhos”.
Enrolar os doces era outra função que minha mãe e as tias nos delegavam. Elas untavam as nossas mãos e ensinavam de qual tamanho as bolinhas deveriam ficar. Começávamos imitando, mas descambávamos para uns brigadeiros do tamanho de bolas de golfe. Era mais rápido e, ao final, nós só queríamos sair da cozinha para irmos brincar no quintal ou na rua.
Na hora do banho e me trocar para receber a horda de amigos, o aroma era de hotdog, milho cozido e pipoca. As festas de aniversário eram a única ocasião quando o refrigerante era praticamente liberado. Mesmo assim, os adultos diziam que, se exagerássemos, faríamos pipi na cama. Então vinha o parabéns e o momento de partir o bolo. Minhas tias Dedé e Evanir são as especialistas. Num ano era de morango, no seguinte, de chocolate, no outro, de amendoim. Os amigos, finalmente, iam para casa carregando um pacote cheio de balas, bombons, língua de trapo e barrinhas de chocolate. Uma vez algum adulto resolveu incluir apitos. Devem ter se arrependido porque nunca mais aconteceu. Para além do apitaço das crianças, a casa rescendia a açúcar, pipoca e salgadinho. Os aniversários eram festivais de aromas, cores e sabores. As sensações de estar cercado de família, amigos e boa comida me acompanham ao longo da jornada de glutão, de cronista de gastronomia. Sou grato aos meus pais, às tias. Ainda gosto de quando agosto se aproxima, sou leonino, até os planetas se reorganizam. A terra orbita diferente ao meu redor, o universo se rearranja. Tudo é para o meu aniversário.