Bom Gourmet
Opinião: Declarar carne de onça patrimônio cultural não é menos importante que tapar um buraco na rua
A aprovação nesta terça (6) pela Câmara Municipal de Curitiba do projeto de lei que torna a carne de onça um “patrimônio cultural de natureza imaterial” levantou um questionamento sobre a utilidade de uma iniciativa como esta.
Nas redes sociais, a proposta recebeu várias críticas, não pelo conteúdo da lei, mas pela ideia. “Os vereadores não teriam nada melhor para fazer?”, “Porque perder tempo com tais “futilidades” quando tem buraco na rua para tampar ou lâmpada de poste para trocar?” Essas foram algumas das indagações.
Obviamente, uma coisa não exclui a outra. A verdade é que declarar a carne de onça patrimônio cultural de Curitiba é uma notícia que merece ser comemorada. E agora só falta a sanção do prefeito Gustavo Fruet.
São basicamente três os motivos que tornam a notícia boa para a cidade. Em primeiro lugar porque a carne de onça, no meio do cenário gastronômico local, que é dominado pelas cozinhas dos povos imigrantes, é o único prato reconhecidamente típico da capital paranaense.
Em segundo lugar porque associar tipicidades gastronômicas a seus locais de origem reforça a identidade daquela região e de seu povo. Ajuda a preservar uma tradição e a valorizar ingredientes locais e técnicas de preparos que serão passadas de geração para geração.
Em terceiro lugar, isso terá um impacto econômico, embora atualmente ainda não seja possível de mensurar. Mas é claro que o prato vai poder entrar nas ações de marketing da cidade, atraindo turistas e despertando a curiosidade de quem é de fora.
Exemplos não faltam
A ideia de declarar pratos típicos ou inteiras culinárias como patrimônio cultural não nasce hoje em Curitiba. Exemplos não faltam no Brasil e no mundo.
Para citar um caso perto de nós, em 2015, o município de Palmeira, no interior do Paraná, decretou que o pão no bafo se tornasse um “legado cultural dos Alemães do Volga que o inseriram na culinária palmeirense e fora transmitido de geração em geração”. Hoje Palmeira significa pão no bafo e pão no bafo significa Palmeira. E se você quer comer um legítimo pão no bafo tem que ir até lá. A receita oficial foi até incluída na própria lei.
Até a Organização das Nações Unidas (ONU) nos últimos anos intensificou o reconhecimento da gastronomia como legado cultural. Não apenas defendendo pratos típicos, como no caso do norte-coreano kimchi, especialidade à base de vegetais fermentados, que no ano passado foi incluído na lista dos bens imateriais da Unesco. Mas até colocando toda uma cultura gastronômica na mesma lista. Em 2013 inseriu a dieta mediterrânea, patrimônio de vários países (Chipre, Croácia, Espanha, Grécia, Itália, Marrocos e Portugal), e a cozinha japonesa. Em 2010, já tinha feito a mesma coisa com a cozinha francesa e com a mexicana.
Isso porque a culinária de um país é fortemente ligada a outros aspectos da vida humana como o saber fazer, os símbolos, as tradições, as técnicas de preparo e até os rituais de consumo e compartilhamento da comida. “É uma refeição festiva que reúne as pessoas para apreciar boas comidas e bebidas”, escreve a Unesco em defesa da cozinha francesa.
A fama da França não se dá apenas por suas belezas históricas ou naturais, mas também porque os franceses sabem valorizar e preservar a própria gastronomia. A mesma coisa acontece, em diversas medidas, em outros países, desde Itália, Espanha, Portugal, China, Japão e México.
Nestes países as pessoas são as primeiras a defenderem os ingredientes e as iguarias típicas. A comida é uma das identidades mais fortes de um povo. Basta pensar nos registros de indicação geográficas e denominação de origem tão comuns na Europa que ajudam a defender e agregar qualidade aos produtos locais. Felizmente, essa prática está se difundindo também no Brasil.
Vale ainda destacar o caso do nosso vizinho Peru, que, com o auxílio do chef Gastón Acurio, transformou o país de Norte a Sul, trouxe o olhar do mundo para gastronomia peruana e ainda de quebra levou o ceviche, na versão tradicional ou desconstruída, para o cardápio de restaurantes de outros países.
Ma se não formos nós os primeiros a reconhecer a importância cultural da carne de onça (e isso vale para todas as culturas e tradições gastronômicas brasileiras), não serão os outros a fazê-lo por nós. Curitiba e os curitibanos agradecem.
*Andrea Torrente é jornalista do Bom Gourmet