Bom Gourmet
Resgatada pela alta cozinha, comida caipira volta a ocupar lugar de destaque entre chefs
Quem experimentou preparos feitos no fogão à lenha guarda na memória os sabores que as panelas de barro e de ferro reservavam aos comensais. A culinária caipira é uma tradição formada por ingredientes, utensílios e modos de cocção herdados das culturas tupi-guarani e portuguesa somados a um momento histórico que encontrou no milho a solução alimentar perfeita para nutrir o povo de uma extensa área chamada Paulistânia, que vai de Goiás ao Rio Grande do Sul, passando por São Paulo e Paraná.
Cozido na panela, assado sobre as brasas, em forma de canjica, sopa, caldo, quirera, cuscuz, angu, fubá, pamonha e muitos outros preparos, o milho está no DNA da cozinha caipira. Nas formas secas, como a farinha de beiju, era alimento prático para os tropeiros que precisavam comer sem parar o trabalho. Demolhado, se faz presente nas formas salgadas e doces, a exemplo da canjicada, feita a partir do milho branco cozido com canela em pau, sal e doce de leite caseiro.
Deriva também do milho as carnes mais usadas: alimentados por seus grãos, porcos e galinhas iam do quintal diretamente para a fogão, onde viravam preparos fritos, assados ou cozidos. “Se comia também muito porco e boi na lata, porque ele já estava pré-cozido, era mais prático. Não tinha que ir no quintal caçar um porco ou uma galinha”, relembra Simone Gomes, chef que comanda o Espaço D’Lilli Buffet e Eventos, em Curitiba.
Nascida e criada em sítios no interior do Paraná, a culinária caipira sempre fez parte da sua vida e marcou suas predileções gastronômicas. Com quatro fogões a lenha espalhados entre seu restaurante, em Curitiba, e o sítio, em Antônio Olinto, ela ainda usa técnicas tradicionais para trazer mais sabor aos seus preparos.
Uma delas é cozinhar com o disco de arado, ferramenta de ferro que era improvisada como chapa para fritar carnes e preparar o famoso feijão tropeiro, que na receita da chef leva pancetta, calabresa, linguiça, carne bovina, feijão carioquinha, ovos, farinha de mandioca crua e cheiro verde. Preparado em uma única panela, como muitos pratos da cozinha caipira, esta técnica faz com que todos os sabores se misturem e se possa aproveitar a gordura da carne suína.
“Este é um prato tradicional dos tropeiros. Eles não tinham como carregar acessórios, como limpar e como manter, então era tudo feito em uma panela só. E isso caracteriza o resultado final da comida, porque assim se aproveita os sabores de todas as carnes diretamente na panela”, explica a chef Simone.
A ferro e fogo
Além do preparo em poucas ou uma única panela, a alquimia decorrente da interação entre alimentos e utensílios, como a panela de ferro, interfere no gosto dos alimentos, o que também pode ser considerado um “tempero” da culinária caipira. “A panela em si solta um saborzinho de ferro”, aponta Amanda Kosinski, que junto a Camila Lovato comanda a cozinha da Central do Abacaxi, em Curitiba.
“Ela mantém muito a temperatura, não esfria rapidamente, então para você grelhar, selar ou cozinhar longamente, a panela é ideal. Se você tampar super bem ela quase faz um processo de panela de pressão”, explica a chef. Por ser mais grossa, a panela de ferro demanda um período mais longo de exposição ao fogo para cozinhar, o que ajuda a concentrar o sabor dos alimentos.
Antes das panelas de ferro, eram as peças de barro que dominavam as cozinhas. Ela também ajuda a manter a comida quente por mais tempo e é recomendada para preparos mais líquidos e cremosos, como caldos, moquecas e sopas. Alimentos com menor teor de água devem ser evitados, porque ela os resseca mais facilmente.
Herança dos indígenas para a Paulistânia, as panelas de barro foram sendo substituídas pelas de ferro, mais resistentes e menos porosas, já que a porosidade pode interferir no sabor dos alimentos caso as panelas não sejam higienizadas adequadamente.
Algumas casas tinham forno e chaminé acoplados no fogão à lenha, enquanto outras eventualmente dispunham de um forno romano na parte de fora, que servia para assar carnes, biscoitos e pães em ocasiões especiais, como expõe o sociólogo Carlos Alberto Dória no livro “A Culinária Caipira da Paulistânia”, um intenso trabalho de pesquisa em colaboração com o chef Marcelo Corrêa Bastos.
À moda antiga, o restaurante Armazém Santo Antônio, em Curitiba, acende o forno a lenha de terça a domingo para produzir 14 tipos diferentes de pães caseiros. “A panificação no forno a lenha é única. O pão fica cascudo, o sabor dele muda, até pela questão da defumação”, comenta o chef Giuliano Hahn. O processo, porém, demanda tempo, como tudo na culinária caipira: os pães assam em 20 minutos, mas só para acender o forno a lenha são necessárias cerca de três horas.
Quando falamos sobre carnes, o tempo de cocção é igualmente lento: um porco precisa assar entre cinco e seis horas para ficar no ponto. “Ele vai assar apenas na brasa. Depois de refratar você coloca a carne lá dentro e espera”, explica o chef. Mas ele reforça: o empenho para tentar alcançar o verdadeiro sabor caipira vale a pena.
Sabor caipira
Os sabores da tradição caipira decorrem principalmente da escolha de ingredientes regionais e plantas colhidas no quintal. Como ingrediente principal, o destaque é da tríade milho, feijão e abóbora; nos temperos, sal, cebola, alho, louro e cheiro verde. Para fritar, untar ou conservar, banha de porco. Por mais que muitas plantas diferentes fossem usadas, seja para temperar, virar chá ou salada, uma característica desta culinária é que cada alimento tem seu sabor elevado e preservado.
“Na culinária caipira, a gente não faz muito mais com o ingrediente”, explica Amanda. “A gente pega um quiabo, por exemplo, algo extremamente caipira, e valoriza esse ingrediente. O transforma de maneira simples, mas ele fica cheio de sabor.”
Quanto às carnes, a predileção é pela de porco e de frango, por questões de praticidade. Criados no quintal, os animais se alimentavam principalmente dos restos de comida da família e de grãos de milho. “Além do sabor, que realmente fica mais gostoso no fogão a lenha, até o jeito que o animal é criado o deixava mais saboroso”, comenta Joy Perine, chef do restaurante Enjoy Gastronomia e sócia do GoodGuys, especializado em carnes.
A carne bovina também era utilizada, especialmente em forma de charque ou em lata, ou seja, armazenada em banha de porco. Eram privilegiados, portanto, os preparos que poderiam durar dias, ou até meses, sem a necessidade de refrigeração.
Além deste tronco comum de alimentos, cada região também dispõe de ingredientes típicos. No Paraná, por exemplo, o pinhão assado na chapa do fogão a lenha; já em todo o litoral, a incorporação de peixes e frutos do mar no dia a dia, além da troca da farinha de milho pela de mandioca, posto que o milho não pega bem no terreno litorâneo. A culinária caiçara, portanto, também entra no leque daquilo que podemos considerar como culinária caipira — ela só se diferencia por assimilar os ingredientes locais específicos daquela região.
Comida afetiva
No longo tempo de cocção, a culinária caipira traz mais do que um sabor diferente aos alimentos. “Você estar ali escutando o barulho do fogo, batendo um papo com a família, tomando um café ou um chimarrão. Eu acho que é isso que as pessoas têm muita saudade e lembram com carinho: queremos resgatar o tempo do fogo”, comenta a chef Simone, com razão.
A memória do aroma da comida pela casa e da convivência que o preparo das refeições criava faz parte da experiência de todas as chefs entrevistadas. “Comida caipira é comida de quintal, de afeto e de lembrança”, diz Amanda.
No Enjoy Gastronomia, a chef Joy Perine se baseia muito nas receitas que aprendeu com a avó para criar o cardápio. No buffet ela serve conservas, marmelada, chips de aipim, couve e diversos cortes suínos. Ela conta que certo dia serviu um quibebe que fez muito sucesso — e o segredo era simples. “Era só abóbora que madurou no pé e foi feita na panela de barro, com sal e azeite de oliva”, relembra.
Com a abóbora de pescoço, ela também faz uma sobremesa irresistível: cocada mole de abóbora, que é servida com um bolo de tapioca. “Eu percebo que as pessoas ficam mais encantadas com os pratos da culinária antiga, de família ou caipira. Isso me surpreende”, comenta a chef.
Desencanto
O encanto com a culinária caipira ressurge após um período de intensa desvalorização desta tradição causada por uma somatória de fatores. Com a crescente industrialização, a qualidade sanitária dos ingredientes e métodos caipiras foi colocada em xeque, além de haver a modernização de instrumentos e produtos que aceleravam os processos de cocção e conserva dos alimentos.
A migração cada vez mais intensa de povos europeus e asiáticos para o Brasil também alterou a configuração da culinária local, bem como modismos gastronômicos que cada vez mais colocavam a tradição caipira em uma posição de pobreza e precariedade.
O principal alvo foi a banha de porco. Largamente utilizada como gordura em receitas doces e salgadas, a ponto de o mercado nacional não dar conta da demanda, sua popularidade foi ladeira a baixo depois da peste suína que chegou ao auge na década de 1940. Como solução, os óleos vegetais tornaram-se uma alternativa bem aceita entre o público consumidor.
A carne de porco também sofreu uma queda intensa no consumo — até hoje, entidades relacionadas à indústria da carne, como a Associação Brasileira de Proteína Animal, fazem campanhas para tentar acabar com o estigma de que a carne suína não é saudável. Com a queda de prestígio destes ingredientes, muito do sabor da culinária caipira se perdeu ao longo do tempo — até ser resgatada por diversos movimentos que clamam pela volta às raízes da cozinha regional.
Tradição de vanguarda
Na contramão da industrialização, chefs, produtores e demais atores relacionados à gastronomia deram início a movimentos que buscam resgatar a produção, os ingredientes, as técnicas e também o tempo da culinária caipira, a exemplo do movimento Slow Food. Neste sentido, falar desta tradição nos dias atuais é também relacioná-la à crescente valorização dos orgânicos, do locavorismo e das Pancs, plantas alimentícias que, se hoje não são convencionais, há anos eram comuns para as famílias do campo.
“Já se comia, por exemplo, a serralha. Todo mundo fazia salada com ela, é uma delícia. Agora redescobriram que é possível comer, mas se antes a gente falasse isso, era veneno”, comenta a chef Simone, do Espaço D’Lilli. Assim, outro movimento que tem sido destaque entre os chefs brasileiros é justamente o resgate da comida afetiva que, nas regiões que formam a Paulistânia, inevitavelmente topa com os sabores da culinária caipira.
“Os modismos vêm e vão, mas não aquela essência que veio da família. E como todo mundo tem um pezinho na culinária caipira, não tem muito como fugir”, comenta Joy.
A nova culinária caipira
De volta aos holofotes, o termo-chave para a culinária caipira contemporânea é a valorização dos ingredientes típicos, misturando técnicas antigas com novas experiências. Exaltar o sabor próprio dos alimentos sem mascará-los com temperos fortes, além de priorizar ingredientes frescos e sazonais, é uma marca que se mantém nesta tradição repaginada.
“A reinvenção acontece a partir do ingrediente simples. Valorizá-lo ao máximo e apresentá-lo de outras maneiras”, aponta Amanda, da Central do Abacaxi. O inesperado é o que surge desta convergência entre o convencional e o novo, a exemplo da pancetta à pururuca de Joy Perine.
Na receita elaborada pela chef, a pancetta é temperada apenas com sal e pimenta e depois marinada em um molho barbecue reduzido com suco de mexerica. O preparo vai ao forno em fogo baixo por três horas e, antes de ser retirado, ela aumenta a temperatura para a pele do porco “pururucar”. Para acompanhar, guisado de banana-da-terra preparado com gengibre, cheiro-verde e cebola no azeite de oliva, além de chips de couve e uma folha de banana especial, receita com origem na gastronomia molecular. “Pego uma banana, misturo com duas colheres de glucose, bato com um pouquinho de água, espalhado na forma e coloco em fogo baixo até virar uma folha de papel”, explica a chef.
Hoje, a culinária caipira está presente no cardápio de diversos restaurantes da alta gastronomia. No Nomade, de Lênin Palhano, a releitura de preparos típicos, como a mousse de milho, que na versão do chef é servida com chocolate branco e pipoca doce, aparece ao lado de preparos internacionais, como o creme brûlée francês. Já nos menus degustação de Manu Buffara é possível encontrar iguarias locais que resultam em pratos com peixes do litoral paranaense, quiabo, abóbora e diversos outros ingredientes que remetem à boa e velha culinária caipira.
Ao falar do resgate desta cozinha pela alta gastronomia, muitos chefs citam Alex Atala e sua famosa galinhada como marco. O preparo começou a ser servido aos sábados para os funcionários do seu restaurante D.O.M., em São Paulo, com receita do sub-chef da casa, Geovane Carneiro. Dada a aprovação, o prato entrou em 2011 para o cardápio do Dalva e Dito, restaurante de Alex Atala especializado em comida brasileira.
“A nossa cozinha passou por uma reforma muito grande nos últimos anos e ele foi o precursor deste resgate. Muitos ingredientes que não dávamos valor, que as pessoas não gostavam, hoje são valorizados”, comenta Simone.
Culinária caipira ou mineira?
Mesmo que a culinária caipira seja típica da grande área da Paulistânia (composta pelos estados de São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Rio Grande do Sul), o que conhecemos hoje por culinária caipira muitas vezes é chamada apenas de culinária mineira. “No fim das contas, não existe diferença notável entre a cozinha mineira e a tradicional paulista, a ponto de justificar uma classificação distinta”, aponta o sociólogo Carlos Alberto Dória no livro “A Culinária Caipira da Paulistânia”.
Na publicação, Dória explica que esta associação direta entre culinária caipira e mineira que povoa o imaginário popular se deu por conta do governo de Minas Gerais, que nos anos 1970 uniu esforços para criar uma forte imagem cultural da região de forma a favorecer a identidade regional e também o turismo.
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