Bom Gourmet
Entre técnicas europeias e ingredientes locais, confeitaria brasileira busca identidade
Antes de enrolar o primeiro brigadeiro, o Brasil degustava um doce que muita gente acha que nasceu em solo nacional. O quindim, feito à base de gemas de ovo e de coco ralado, originalmente chama-se brisa-do-Liz e em Portugal é feito com amêndoas, um ingrediente raro no país na época da colonização. Alguma cozinheira, quem sabe inspirada pela abundância do fruto em solo brasileiro, arriscou uma substituição e deu no que deu. Fundou-se uma doçaria baseada em receitas lá de longe com os produtos aqui de perto.
Há quem diga que ainda é cedo para falar de autoria, uma vez que muitos dos doces icônicos são versões de pratos de imigrantes, como os bolos com nata batida com açúcar e decorados com morango, o cuque e os bolos secos, sem recheio nem cobertura, para citar apenas os mais populares no Sul do Brasil. Subindo o mapa até o Nordeste, encontram-se as compotas de fruta, sobremesas de tacho, como a goiabada, o doce de leite, as sobremesas à base de mandioca, coco e milho. E a “culpada” por tudo, a cana-de-açúcar.
Antes de transformarem a cana em um granulado com capacidade para adoçar, estabilizar e conservar preparos, o mundo se virava com mel e frutas, que estragam facilmente e têm sabor pronunciado, muitas vezes roubando a cena. E sem o Brasil, que foi um dos principais exportadores de açúcar enquanto colônia portuguesa, a confeitaria de boa parte do planeta não teria ido tão longe rapidamente, uma vez que o açúcar de beterraba, mais usado na Europa, só foi descoberto quase 300 anos depois.
Nas palavras do sociólogo Gilberto Freyre, foi o açúcar o responsável pela junção de culturas e culinárias no Brasil, ainda que o ciclo da cana-de-açúcar tenha sido marcado pela escravidão. Falar de açúcar é falar de poder: produzido desde o século 16, foi uma das especiarias mais caras do mundo, naquela época usada até em pratos salgados com carnes e peixes.
“Servir e comer doces era sinônimo de status. Ter um dente podre era chique, porque significava que consumia muito açúcar”, comenta Lívia Medvid, professora de pâtisserie do Centro Europeu. O desbunde que a realeza pode provar quando a produção foi barateada com o solo brasileiro é o que gerou a preferência nacional por doces muito açucarados.
“Nossa cozinha sofreu muita influência da colonização portuguesa, que tem sobremesas à base de ovos e açúcar. Dos escravos, temos o uso do coco e de alimentos que encontraram aqui, como a mandioca”, resume Karyne Iancóski, chef pâtissière e proprietária do Bazar Doce.
O resgate de plantas endêmicas do Brasil e dos costumes indígenas ainda está no início, e mesmo que a identidade brasileira na confeitaria tenha partido de memórias de outrém, temos maneiras de preparar e comer só nossas. “O que caracteriza um preparo como local é o jeito particular daquelas pessoas de usar determinado ingrediente. Por exemplo, na Suécia eles usam bastante leite condensado, mas não fazem brigadeiro nem pudim. Lá, eles usam no cheesecake”, observa Julia Guedes, confeiteira que trabalha com bolos e sobremesas sob encomenda.
O leite condensado na confeitaria brasileira
Fugir do leite condensado é missão impossível na maioria das confeitarias e das festas de família do Brasil. Quando foi lançado, veio com ele uma gama de receitas criadas pela empresa para “facilitar” a vida de quem cozinhava. O pudim de leite, assado em banho-maria e servido com calda de caramelo, foi uma das invenções que pegou.
“Muitas dessas receitas não tinham técnicas avançadas, era só bater no liquidificador, as medidas eram xícaras e prato fundo. Se nós aplicarmos técnicas profissionais ao resgatar essas receitas, podemos atualizá-las”, reflete Karyne.
Foi o que ela fez com o bolo de pudim, que leva também uma camada de pão-de-ló. Para Julia, é preciso aceitar a presença do leite condensado na confeitaria brasileira. “Por mais que muitos profissionais tenham pavor, não se pode negar sua importância. O problema é que tem sido usado como um atalho e deixado tudo parecido”, opina.
Influências e técnicas
Até metade do século 20, a doçaria se mantinha no âmbito doméstico, quando os imigrantes europeus abriram as primeiras confeitarias no Sul do Brasil. “Na Europa, as pessoas começaram a sair para tomar chá e café com doces no início do século 18. Aqui no Brasil houve uma divisão: temos uma confeitaria doméstica, que ficou como “comida de sítio”, e uma social, mais recente”, comenta Carolina Garofani, confeiteira e proprietária da Caramelodrama Confeitaria. E como toda cultura alimentar de imigrante, a tendência é repetir por gerações receitas de uma época que talvez já tenha passado no país de origem.
A formação técnica, no entanto, sempre foi voltada ao jeito francês de assar e confeitar, ainda que as heranças doces da Itália, Alemanha e Áustria tenham alcançado o sul brasileiro maciçamente. A pâtisserie é rica em cremes e molhos, com apresentações sedutoras e produtos mais perecíveis, enquanto a pasticceria italiana é mais seca, usa bastante oleaginosas e tem produtos que podem ser guardados por um longo tempo, como biscoitos.
“Eu saí da faculdade com uma visão muito purista da confeitaria. Quando abri a Bazar Doce, a especialidade era confeitaria francesa. Fazia uma madeleine e as pessoas queriam bolo de laranja. Assava brioche e pediam chineque”, ri Karyne, que mudou o foco de sua loja depois do primeiro ano de funcionamento.
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Quando o Bom Gourmet perguntou às chefs pâtissières quais as receitas que trariam o melhor da nossa doçaria, elas voltaram algumas gerações para se inspirar e atualizar o preparo e a apresentação de sobremesas consolidadas nas confeitaria brasileira. E confirmam o que Freyre apregoava na década de 1950: que bolos e doces nunca envelhecem.
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Serviço | Freezer Point.Rua Alferes Ângelo Sampaio, 1.816 – (41) 3223-1109. Morô? Casa e Decoração. Rua Dr. Faivre, 977 – (41) 3057-4040. Spicy. Shopping Crystal – (41) 3233-2248. Yellowart Casa. Rua Rocha Pombo, 81 – (41) 3253-3498.