Bom Gourmet
Carne de onça, a 'hackepeter' de Curitiba, em vias de conseguir registro de indicação geográfica
A carne de onça preparada no Bar Martelo, no Rebouças. Marcelo Andrade/Gazeta do Povo
Em Curitiba, o clássico petisco de bar passa longe da fritura. Pedir um pão com bolinho pode ser uma ótima escolha, mas o boêmio raiz vai aconselhá-lo a provar uma iguaria feita de carne bovina crua moída, servida sobre uma broa de centeio e encimada por cebola branca crua e cebolinha. Temperos, são apenas três: sal, pimenta-do-reino e azeite de oliva.
A carne de onça é patrimônio imaterial de Curitiba desde 2016 e é aparentada de outros preparos crus: a alemã hackepeter, o francês steak tartare e o árabe quibe cru, para ficar nos mais famosos. Em sua singularidade, a carne de onça é menos temperada que os demais preparos, mas deve ser igualmente servida o mais fresca possível. O prato que mais se aproxima seria a italiana carne cruda alla piamontese, que leva carne de vitela picada na ponta da faca, sal, pimenta-do-reino, azeite de oliva e parmesão. Algumas versões têm alho, sumo de limão e ervas frescas, como salsinha e tomilho.
Na versão alemã, era comum o uso de carne suína moída (preferência abandonada pelos colonos no Brasil) e na francesa, a recomendação é o mignon bovino picado na ponta da faca. Ambas apresentam variação dos condimentos e ingredientes que trazem um azedinho – há preparos com conservas, como alcaparras, picles de pepino e cebola, além de molho de mostarda e molho inglês. Podem também incluir uma gema de ovo crua, conhaque, mostarda Dijon e molho de pimenta vermelha.
Apesar da clara influência alemã no consumo de carne crua nos bares curitibanos, nada disso está na receita clássica da carne de onça curitibana. O natural gosto adocicado da carne crua equilibra a pungência da cebola e da cebolinha. O corte tradicionalmente usado para fazê-la é o patinho, com bom custo-benefício e pouca gordura. No ranking do site Taste Atlas em 2023, a carne de onça recebeu o décimo lugar, enquanto a hackepeter ficou em terceiro, e o steak tartare, em quarto lugar.
"De todos os pratos listados no ranking, o que tem menos tempero é a carne de onça. É o sushi do Fritz", brinca Sérgio Medeiros, do Curitiba Honesta, organizador de sete edições do Festival de Carne de Onça e o principal agitador cultural da comida de boteco da capital paranaense. Sérgio é presidente da Associação Amigos da Onça (AAONÇA), criada em 2023 para iniciar o registro de Indicação Geográfica (IG) junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). O processo tem tramitado de forma rápida e está nas últimas etapas – é possível que seja concluído ainda em 2024.
Indicação Geográfica
O registro de Indicação Geográfica é concedido a produtos que são característicos de seu local de origem e que tenham uma história de tradição e disseminação cultural ao longo de um período. Para obtê-lo, é preciso que uma associação de partes interessadas em resguardá-la se forme, entre com o pedido no INPI e apresente uma série de documentos e um dossiê que mostre a importância do produto e sua expressão local. "Nesse documento de notoriedade, entraram as pesquisas da Curitiba Honesta com documentos que vão da influência alemã até os dias de hoje, com detalhes de quais restaurantes preparam a tradicional carne de onça", exemplifica Andréia Claudino, consultora que atendeu à AAONÇA e sócia da BioQualitas Paraná.
"Não precisa ser associado para fazer uso do signo distintivo, mas precisa estar na área delimitada, ou seja, em Curitiba, e seguir o caderno de especificações técnicas", esclarece Andréia. "A associação, por sua vez, tem de detalhar todas as regras do produto e de produção, porque uma vez concedido o selo de IG, há respaldo jurídico", complementa. Neste caso, se algum estabelecimento descaracterizar o produto e o vender com o selo, pode ser processado.
"A carne de onça é de Curitiba, mas cada bar faz como quiser", explica Sérgio Medeiros. Os bares podem servir preparos autorais, mas só poderão usar o selo de IG se houver uma versão no cardápio de acordo com a receita protocolada junto ao INPI. "A gente foi lá atrás pesquisar a receita a partir de jornais e também de história oral. Conversei com o Ronaldo Abrão, o proprietário do “Bar do Ligeirinho”, que me contou muita coisa", conta Sérgio.
Nas pesquisas realizadas, a constatação foi que a carne sempre foi pouco temperada, apenas com sal e pimenta-do-reino. "Nós registramos essa receita [veja box] que pode variar entre temperar a carne antes ou servir os ingredientes separadamente para o comensal montar", diz Sérgio.
A AAONÇA foi criada em maio de 2023 com 14 fundadores, e hoje conta com 25 associados. Na perspectiva de Sérgio, presidente, e de Andréia, consultora com mais de dez anos de experiência em IG, a associação tem funcionado exemplarmente e deve crescer de forma exponencial pela importância que o selo somará à carne de onça. "Se você for a Recife, vai querer comer bolo de rolo. Se estiver no Espírito Santo, vai provar a moqueca capixaba. E em Curitiba você vai comer carne de onça, porque ela só existe aqui", resume Sérgio.
Além do impacto econômico, ambos enxergam um efeito positivo no turismo. "A França tem mais de 800 indicações geográficas e é um país pequeno. Veja o que é o conhaque e o champagne", compara Sérgio. O país europeu tem trabalhado com a legislação há mais de 100 anos, enquanto no Brasil, a primeira indicação geográfica data de 2002. "Uma das coisas que acho mais interessante é que há turistas que têm um estranhamento com a carne de onça. Quando se explica a origem, o processo e a importância do saber fazer local em um produto tradicional, isso ajuda a ampliar a autoridade daquele conhecimento. É um legado que se deixa para a cidade", resume Andréia.
A onça e a broa
A broa de centeio, base sobre a qual a carne de onça é servida, é mandatória. Dificilmente algum bar ou restaurante servirá com outro tipo de pão, por isso, o registro junto ao INPI lista a broa como um dos ingredientes. "Tanto a broa de centeio quanto a carne de onça surgiram ligadas a estratos sociais mais populares. Há registros de 1870 da broa de centeio como alimento dos camponeses no cinturão de Curitiba, e a carne de onça aparece como um prato do Bar Marumby em um anúncio de 1935", diz Oscar Luzardo, padeiro, empresário e autor do livro "Origem, notoriedade e continuidade histórica das Broas de Centeio em Curitiba". O anúncio encontrado em um jornal por Oscar e a coautora Claudine Botelho é o registro mais antigo do prato, anterior inclusive à famosa história do Bar Ligeirinho e do Clube de Futebol Britânia, que data da década seguinte.
"A partir das décadas de 1950 e 1960, a carne de onça foi transcendendo o popular e aparecendo no cardápio de estabelecimentos de alimentação fora de casa e em menus de jantares da alta sociedade paranaense em clubes sociais, muitos de origem alemã, mas também dos clubes desportivos, que foram surgindo por fusões", analisa Oscar. "De alguma maneira, esses clubes e a notoriedade da broa e da carne de onça cresceram em conjunto até a década de 1990. A partir da década de 2010, a gastronomia de todo o mundo teve uma movimentação importante no que era considerado de bom gosto, como gourmet. E aí começam a aparecer preparos populares repaginados em restaurantes, o que aconteceu com a carne de onça", completa.
A broa de centeio também está em processo de registro junto ao INPI por iniciativa do Sindicato da Indústria de Panificação e Confeitaria no Estado do Paraná (SIPCEP). Nas especificações técnicas para definição do produto, está uma quantidade mínima de 40% de centeio sobre o peso da massa, mix de farinhas que pode ser de trigo integral e branco, sal e fermento natural. O processo também deve ser concluído ainda em 2024, e os bares e padarias de Curitiba ganharão nova projeção com os selos de Indicação de Procedência, o tipo de registro de Indicação Geográfica pleiteada para a carne de onça e para a broa de centeio.
Amigos da Onça
Na noite de 11 de março, uma segunda-feira, o Bar do Alemão lotou seu salão com capacidade para 300 pessoas. Foram servidas 300 porções de carne de onça e 300 submarinos com uma canequinha com a marca da AAONÇA. O evento promovido pela associação arrecadou fundos para manter um caixa e conseguir participar de feiras de turismo, pagar despesas necessárias para sua manutenção, além de pagar parte da consultoria viabilizada pelo SEBRAE-PR e celebrar o trabalho já realizado.
"Às 20h, já não tinha mais espaço para ninguém entrar. Teve gente dividindo mesa em Curitiba! Para você ver o que a onça não faz", diverte-se Medeiros ao comentar sobre a lotação do bar. Desde o primeiro festival promovido pelo Curitiba Honesta, em 2014, a carne de onça tem ganhado projeção nacional, em partes pela alcunha peculiar. Quem é de fora, fica curioso e muitas vezes acredita que o nome é literal. Quem já conhece e tem o hábito de comê-la, infla de orgulho. Já foram realizados sete festivais, que reúnem cerca de 30 restaurantes por edição. Mas não é preciso esperar pelo evento para comê-la: atualmente, são 200 estabelecimentos em Curitiba com o prato no cardápio, estima a AAONÇA.
Um deles é o Barbaran, há 16 anos instalado na sede da Sociedade Ucraniana do Brasil em Curitiba. Ainda que a cozinha ucraniana não apresente nenhum prato com carne crua similar à carne de onça, o endereço é um dos principais bares da cidade para comer uma versão do prato. "Quando eu comi carne de onça a primeira vez eu tinha uns 30 e poucos anos, foi um vizinho quem fez. Eu achei saborosa e refrescante", relembra Igor Baran, proprietário do Barbaran hoje com 59 anos. "Não era um prato tão popular quanto hoje. Era algo restrito, uma coisa mais masculina, de botecão", analisa.
Na receita servida atualmente pelo Barbaran, o patinho moído leva um toque de aceto balsâmico e molho suave de pimenta vermelha. A cebola, cebolinha e o pão são servidos separadamente, para que o cliente monte sua fatia com as proporções que preferir. "Quando o registro de IG estiver pronto, vamos servir a carne de onça do Baran e a carne de onça de Curitiba", adianta Igor, também membro da AAONÇA.
Na quinta e sexta-feira anteriores ao evento no Bar do Alemão, a AAONÇA participou da Expo Turismo Paraná, na Via Soft Experience, na Universidade Positivo, servindo 600 porções do petisco aos visitantes. O prefeito, Rafael Greca, aparece em um vídeo publicado pela associação, com 20 porções em uma bandeja: "Um prato muito curitibano, carne de onça que não mata onça!", anuncia o prefeito, oferecendo à comitiva enquanto abocanha dois pedaços.