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Cachaça também é coisa de mulher: participação feminina ganha destaque na produção do destilado
Seja nos alambiques, nas degustações ou nos júris de concursos de cachaça, as mulheres estão ocupando cada vez mais espaços na cachaçaria, uma área que, até pouco tempo atrás, era considerada por muitos um território unicamente masculino. Por todo o país, cresce o número de mulheres líderes na produção de cachaças artesanais, mas os desafios são tão numerosos quanto os diferenciais que tornam os destilados produzidos por elas especiais.
“O homem costuma ser mais técnico”, comenta Lucia Guidolin Regis, cachaceira por opção, como ela própria se define, e uma das fundadoras do Templo da Cachaça, que reúne em um mesmo espaço em Curitiba uma loja com mais de duas mil marcas da bebida de todo o país; local para degustações, cursos e jantares; e um “museu”, onde é exposta a coleção de Orlando Regis, marido de Lucia, também fundador do Templo e de certa forma motivador da paixão dela pelo destilado, já que ela começou a se interessar por isso ao trazer exemplares de diferentes viagens para a coleção dele.
“A mulher tem uma sensibilidade maior para aromas e sabores, e utiliza isso para melhorar o produto”, completa. Para ela, enquanto a preocupação maior dos homens na produção de cachaça é a escala e a lucratividade, a da mulher é o capricho e o esmero aos detalhes, o que resulta em qualidade mais elevada dos produtos.
Ela lembra que o processo da cachaça, desde o canavial até a garrafa, é longo e, via de regra, o produtor faz parte dele de forma integral. A parcela inicial, da colheita e seleção da cana, é a única que talvez exija mais das mulheres por ser mais bruta. “Nas outras fases, achar que a mulher faz menos ou pior do que o homem é puro preconceito”, opina Lucia. A sócia e gestora da Cachaça Sanhaçu, primeira cachaça orgânica certificada do estado de Pernambuco, Elk Barreto Silva, concorda com Lucia. Em seu alambique, mulheres têm preferência na hora da contratação. A atenção, a delicadeza e os cuidados mais atentos aos detalhes fazem a diferença no produto final. “Sabemos que somos todos seres humanos do mesmo modo e que temos características gerais diferentes, mas notamos diferença quando é uma mulher que desempenha certas funções no processo”, comenta.
Apesar de ainda haver certa resistência a mulheres nesse mercado, a produtora percebe uma melhora grande entre o início de sua carreira no meio, há mais de dez anos, e agora. Isso se deve, em parte, ao fato de as mulheres aos poucos passarem a ocupar espaços relevantes no setor. Enquanto Elk lembra de, há alguns anos, muitas vezes ser a única mulher na mesa de palestrantes em eventos sobre o tema, Lucia aponta que há cada vez mais mulheres nas mesas de jurados em degustações, por exemplo.
Por ter vindo da área da Agronomia, que também é majoritariamente masculina, Viviane Bassi, engenheira agrônoma e responsável técnica pela produção da Cachaça Bassi, de Santa Mariana (PR), mostra um ponto de vista que convida à luta por espaços. Ela argumenta que, na cachaçaria, o desafio para a mulher é o desafio que existe em praticamente todas as áreas. “Sempre vai haver algum tipo de preconceito por ela [a mulher, independentemente da área] ser mulher. O que temos que fazer é ganhar força e mostrar que temos capacidade de fazer igual e muitas vezes melhor do que os homens”, diz.
Um novo tempo para a cachaça
Outra transformação em curso percebida pelas produtoras de cachaça se relaciona à imagem e à percepção das pessoas em relação à bebida. Elk conta que o principal preconceito que ela percebe é o externo, por ela trabalhar com cachaça, não exatamente por ser uma mulher neste mercado. Existe uma visão enraizada na sociedade — ou em parte dela — de que a cachaça é uma bebida de segunda categoria, de menor qualidade, cujas maiores características são ser barata e embriagar rápido.
Mostrar às pessoas que isso não é verdade, que ela é uma bebida nobre, representativa do Brasil, rica em sabor e em cultura e que existe, em qualidade, em pé de igualdade com outros destilados muito valorizados entre apreciadores de bebidas alcoólicas finas, é uma missão para muitas produtoras e produtores. Essa mudança de cultura tem sido impulsionada pela geração de conhecimento.
Além da criação de espaços para cursos e degustações recheadas de saber compartilhado, como no Templo da Cachaça, é tendência entre os alambiques abrir seus espaços para visitação como atração turística imersiva, momento em que as pessoas podem ver de perto a produção e o refinado trabalho envolvido, e conhecer melhor o valor intrínseco a cada garrafa. A prática é aplicada pela Sanhaçu, com resultados positivos. “O que mais escuto nas visitações são pessoas dizendo que não achavam que poderiam aprender tanto com a cachaça”, conta Elk. Desde 2016, a bebida é reconhecida como patrimônio histórico e cultural do Brasil, a partir de decreto do Congresso
Nacional.
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A inovação e a aplicação, no mundo da cachaça, de técnicas utilizadas em outras indústrias também têm sido um ponto de transição. Na Sanhaçu, por exemplo, as cachaças fermentam e envelhecem ao som de música erudita, prática aplicada por indicação de uma especialista em fermentação a partir de estudos que mostram que as ondas sonoras emitidas pela música clássica harmonizam a união das moléculas da bebida de forma mais positiva do que no silêncio. A experiência já havia trazido resultados em empreendimentos de vinho e até de leite.
Blend feminino
Um exemplo da potência das mulheres no mercado da cachaça é o blend Cinco Almas, bebida colaborativa elaborada pela cientista de alimentos Aline Bortoletto, que reuniu cinco produtoras relevantes do Brasil, de quatro diferentes estados, para criar um destilado único lançado no Dia Internacional da Mulher. A partir das cinco amostras das convidadas e de dois anos de trabalho, a cachaça foi harmonizada em madeiras de umburana, carvalho, freijó, jaqueira e jequitibá. Elk Barreto Silva é uma das “almas” e acredita que a iniciativa é uma forma de mostrar que as mulheres também se destacam no mundo da cachaça.
Do ponto de vista da mixologia, a utilização da cachaça se mostra cada vez mais interessante e explorada de maneira criativa. Indo muito além da caipirinha, as cachaças nobres representam um vasto universo de sabores a partir dos blends, das madeiras utilizadas no envelhecimento, do processo de produção e da região produtora. O resultado são drinks originais enriquecidos por uma bebida puramente brasileira.
No Templo da Cachaça, uma mixologista ministra cursos de coquetelaria com cachaça. “A cachaça, sem perder sua pujança, não toma conta dos outros sabores presentes no drink, como acontece com outros destilados. É uma bebida saborosa, alcoólica, com a qual você consegue fazer coquetéis em que todos os componentes são sentidos”, explica Lucia.
Paraná na garrafa
Segundo o Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), o Paraná é o sexto maior produtor da bebida e o terceiro maior exportador do país. A Cachaça Bassi, de Viviane Bassi, é um exemplo dessa produção de destaque. Criada nos anos 1980 de forma artesanal pelo avô de Viviane, Paulo Bassi, depois de a família produtora de café no Norte do estado sofrer com a histórica geada de 1975, a cachaçaria se profissionalizou e ganhou destaque nos últimos dez anos.
A engenheira agrônoma conta que, atualmente, as pessoas já veem como mito a conversa de que cachaça boa tem que ser mineira. “Hoje, as pessoas reconhecem mais e procuram especificamente cachaças paranaenses”, conta.