Bom Gourmet
Belém do Pará é uma viagem de sabores, saberes e sensações

Banda de tambaqui Restaurante Casa do Saulo das Onze Janelas de Belém. Crédito: André Bezerra.
Sagrado, profano, restaurantes sofisticados, culinária de rua, selva, cidade, rios e baía de água doce que encontra com a água salgada do mar. Do ponto de vista gastronômico, Belém do Pará é a terra dos contrastes e da pluralidade.
A capital do Pará - debruçada sobre a baía do Guajará - recebe, diariamente, centenas de pescadores que chegam dos rios Guamá e Acará, vindos do oceano Atlântico, através da baía do Marajó. Os barcos chegam carregados de peixes de água salgada e água doce.
Há, também, influências das comunidades amazônicas tanto nos produtos quanto nas técnicas culinárias. O resultado é uma profusão única de produtos locais e de pratos. Contidos nas receitas - algumas seculares - as cores e aromas da floresta, os sabores dos rios e do mar, a diversidade e os saberes das comunidades.
Um mercado do tamanho da Amazônia
O Mercado Ver-o-Peso, vizinho da Estação das Docas, é o símbolo maior de toda esta pluralidade. Ali estão comerciantes, artesãos, curandeiros, moradores da cidade, além de turistas do Brasil e do mundo. Tudo e todos passam pelo Mercado. Ele intercala setores abertos para a rua, barracas com vista para a baía do Guajará e o prédio histórico que abriga as bancas dos pescadores e seus pescados. De longe, o alarido remete a uma “torre de babel”. Seus corredores, vielas e passagens, um imenso labirinto. De perto, todos se entendem e os caminhos se encontram e conduzem pelo emaranhado de pequenos negócios.
No setor gastronômico, assim como nos demais, sempre haverá alguém abordando as pessoas. Ali se oferecem sucos batidos na hora: maracujá, acerola, abacaxi, cupuaçu, taperebá, goiaba, graviola, bacuri, cacau, tucumã, e buriti. Tem muitos mais, com nomes curtos, sempre sonoros, como caju e uxi.
Peixe frito e açaí, instituição paraense
Um pouco mais adiante, no mesmo setor, uma joia da culinária paraense é oferecida com grande orgulho e sob intensa procura: peixe frito, açaí e farinha. O peixe pode ser dourada (não confunda com o dourado), filhote (tradicional na culinária amazônica) e tantos outros. Aquela espécie de “purê” do açaí, invariavelmente, virá na cuia. Quem quiser açúcar, pode até adicionar, mas não é tão comum quanto colocar pimenta. As pessoas chuviscam a farinha e intercalam garfadas de peixe com colheradas do açaí - que é uma guarnição - na boca. A adição do açúcar na cuia, porém, não é nenhum pecado, vai do gosto de cada um. Bebida pra acompanhar? Suco de polpa ou cerveja bem gelada.
Ah, os sorvetes do Pará!
Uma caminhada diária até o quiosque da sorveteria Cairu, na Estação das Docas, deveria ser Lei Municipal. Como diriam os paraenses: égua! As massas e picolés da Cairu são uma paixão local que arrebata qualquer coração cigano. Os sabores vão de Céu Azul a Carimbó. De cupuaçu a amendoim. De tapioca a taperebá. As cores não caberiam numa paleta e os sabores arrebatam até quem tem o paladar mais distraído.

Restaurante Casa do Saulo - Cidade Velha
Para o outro lado do Mercado e para além da “Pedra do Peixe” - onde os pescadores atracam e descarregam seus barcos de madrugada - está o Complexo da Lusitânia Feliz. Foi ali que Belém começou, literalmente, como uma pequena vila lusitana, no início do século XVII. O complexo também está dentro da “cidade velha” e compreende algumas construções históricas belíssimas. Entre elas, a Catedral da Sé, o Forte do Castelo e a Casa das Onze Janelas.
Esta última abriga o Museu de Arte Moderna. No mesmo prédio, há um restaurante que não deveria deixar de ser visitado. É o Casa do Saulo das Onze Janelas. Esta operação chegou ali, há seis anos, para subir a régua da gastronomia local. Os peixes, as farinhas, as ervas, as frutas e os artesanatos vêm de pequenas comunidades rurais e ribeirinhas próximas a Santarém, onde o Saulo Jennings criou seu primeiro restaurante, há cerca de 15 anos. De lá para cá, são oito operações, entre Santarém (PA) e São Paulo.
No Onze Janelas, servem a “culinária tapajônica raiz”. O cardápio, extenso, inclui entradas, peixes, frutos do mar, algumas massas e carne bovina. A grande maioria dos pratos é composta por peixes amazônicos. O salão interno é aconchegante, com pé direito alto, paredes de pedra, iluminação cênica e bar. Mesmo assim, o Bom Gourmet foi recebido na melhor mesa da varanda externa. Ela estava debruçada, de um lado, para o jardim no pátio do prédio histórico e, de outro, para a Baía do Guajará.
Ao som de saxofone e diante do pôr-do-sol ao fundo da baía, provamos um pequeno ágape: banda de tambaqui assado na brasa, arroz de chicória, vinagrete de feijão de Santarém, farofa de piracuí, banana da terra e farinha de Bragança.
Finda a refeição, foi possível compreender porque um dos restaurantes do Grupo foi eleito - por quatro vezes - o melhor da região Norte pela Prazeres da Mesa. O Saulo Jennings foi nomeado Embaixador da Gastronomia Brasileira da Região Norte em 2022.
Restaurante Famiglia Sicília
O Bom Gourmet ainda almoçou com a Angela Sicilia no restaurante Famiglia Sicilia. Cozinheira profissional, ela se especializou em cozinha franco-peruana moderna, pela Le Cordon Bleu do Peru. Em meados da década de 90, passou a atuar no restaurante que foi inaugurado pela mãe dela, no final dos anos 1980.
Desde 2012, a chef Angela oferece a culinária ítalo-amazônica neste que é um dos restaurantes mais tradicionais de Belém. No almoço de domingo, o salão estava bem cheio, com casais e famílias comendo as entradas, massas, carnes e peixes. O ambiente é confortável e despretensioso, sem qualquer apelação que pudesse remeter às tentativas infames de imitar as cantinas italianas. O resultado é uma elegância que condiz com o que é preparado na cozinha.
As opções do almoço foram sugestões da chef. De entrada, Pomodorini original: pãezinhos da casa, sweet grape confitado e cream cheese. Perfeito para abrir o apetite e aguardar a etapa seguinte. O filhote é um dos peixes de água doce mais celebrados na região. Por isso, optamos pelo Filhote na Crosta: lombo do peixe na crosta de castanha do Pará, acompanhado pelo risoto de jambu. Sobrou só a vontade de voltar a Belém e repetir esta excelente pedida.

Cidade Criativa da Gastronomia
Depois daquele encontro, a chef Angela esteve em Buenos Aires e, em seguida, foi para a Feira de Gastronomia em Makau, na China. Belém é Cidade Criativa da Gastronomia, pela Unesco, e a Angela a representa - como chef - em vários países pelo mundo.
Em 2019, a cidade de Parma, na Itália, fez um concurso em que a técnica italiana deveria ser utilizada com ingredientes amazônicos. Ela se saiu com o Raviolli de Maniçoba. Dentre quase 30 competidores, a chef ficou em segundo lugar. Hoje o prato é preparado sazonalmente no Famiglia Sicilia.
Chocolate com alcance social
Como sobremesa, não dá pra ir ao Sicilia e não degustar os produtos da Gaudens Chocolates. É que, ali, tem um empório inteiro com as premiadas “bean-to-bar” da marca, mais um empreendimento da Angela, junto com o irmão, Fabio Sicilia. Doces de frutas amazônicas preparados por bombonzeiras da região dão sabor aos chocolates da Gaudens, fomentando e promovendo a cultura local. “O cacau do Pará é o melhor do Brasil”, afirma a chef que também é sommelière e chocolatière.
Confraria do Fraga - um boteco campeão
Quem for a Belém também não deveria deixar de conhecer o Confraria do Fraga. Este botequim, localizado na Cidade Velha, é o campeão nacional do Comida di Buteco 2025. Esta é a terceira vez que o bar vence a principal competição de comida de boteco do Brasil. Para chegar lá, o Fraga criou o Capitão do Sertão de Virgulino Lampião e Maria Bonita: bolinhos de carne-de-sol suína com baião-de-dois, jabá, jambu, queijo coalho e cheiro verde, empanados no cuscuz de chicória.
O petisco, sozinho, já é um tiro certo de carabina. Mas o ambiente e atendimento também merecem cada menção. O Eudes Fraga tem uma grande coleção de LPs de vinil e garante uma trilha sonora arretada - no volume certo - a noite inteira. Estar no Confraria do Fraga, entre os bolinhos, pastéis, música ótima, sucos de fruta e cerveja locais é mais do que ir “botecar”, é um banho de cultura do norte e sertão brasileiros.
O melhor tacacá paraense está em Curitiba
Curitiba tem sua pequena “sucursal” de Belém e do Pará. Um toldo vermelho na Rua da Paz, em frente ao acesso do estacionamento do Mercado Municipal, lê “Ver-o-Peso da Amazônia”. O pequeno empório sito ali é um gigante para chefs, cozinheiros e quem se interesse pelos produtos paraenses.
Naturais de Belém, Ana Sueli Rezende e Natasha Saliba - mãe e filha - esbanjam simpatia e hospitalidade nortistas. Com sotaque inconfundível, elas demonstram propriedade e disposição ao apresentarem as cachaças, unhas de caranguejo, farinha de Bragança, pimentas, polpas e picolés de frutas, tapioca, açaí congelado, e tantos outros produtos e artesanatos do Pará.
Mas não há pedida melhor do que sentar num banco na calçada, tomar um tacacá preparado na hora pela Sueli e passar um tempo ouvindo boas histórias. Sinceramente? O melhor tacacá que já provei na vida fica bem ali, na Rua da Paz, em Curitiba.