Bebidas
Você já ouviu falar em vinho feito no ovo?
O que veio primeiro, o ovo ou a barrica? Apesar do desenho futurista dos novos recipientes de concreto das vinícolas da Europa e América, o uso de madeira na vinificação é bem mais recente que a prática de fazer vinho dentro de cerâmica. Ou em concreto, como nos dias de hoje.
O “ovo de concreto”, como tem sido chamado, é uma das tendências no universo vitivinícola, ainda incipiente no Brasil. O formato oval é uma releitura das ânforas, os primeiros jarros usados para vinificação, que remonta ao Egito dos faraós.
Os ovos de concreto, criados em 2001 pela Nomblot a pedido do enólogo Michel Chapoutier, do Vale do Rhône, chegaram à América do Sul em 2009 pelas mãos do enólogo chileno Alvaro Espinoza, considerado um dos fundadores e difusores da viticultura orgânica no Chile. A partir daí, a técnica se expande para a Argentina e chega em 2012 ao Brasil.
Através de uma consultoria com Espinoza, a Guaspari, em Espírito Santo do Pinhal no interior paulista, adquire um ovo de concreto em 2012, vindo da região da Borgonha. Os testes iniciais foram com Sauvignon Blanc, que chegou às gôndolas como o Sauvignon Blanc 2013, um blend com os vinhos de tanque de inox, barricas francesas e os ovos de concreto (R$ 98 na loja virtual da Guaspari). “Parte da uva é vinificada por pelo menos um ano no ovo de concreto e deu o resultado que esperávamos: mais estrutura e volume na boca. Pelo formato e porosidade do material, o líquido sempre está em movimento e em contato com as borras finas. Os aromas não são influenciados, só a questão do volume e untuosidade no Sauvignon Blanc”, aponta Flávia Cavalcanti, enóloga da vinícola.
Um tanque oval de concreto da Nomblot de 7 mil litros (1,2 m de diâmetro e 1,75 m de altura) pesa mais de uma tonelada. Com a novidade na Argentina, Matias Michelini, da vinícola Zorzal, passou a produzir ovos de cimento no país para baratear o investimento, apesar de as vinícolas de países vizinhos ainda importarem da França. Estima-se que o valor de um tanque é de US$ 5 mil, mais as taxas de transporte e impostos.
Do barro ao concreto
A partir da metade do século 18, os recipientes de cerâmica foram gradualmente sendo substituídos pela madeira e pelos tanques de concreto revestidos de epoxi. No século seguinte, barris e tonéis se popularizaram e no último quarto do século 20, o material predominante passou a ser o inox.
O pesquisador Wagner Gabardo, da escola Alta Gama, em Curitiba, estudou no Centro Argentino de Vino y Espirituosas e foi lá que percebeu seu interesse por recipientes de vinificação. Quando voltou ao Brasil, concluiu uma pós-graduação na Universidade Tuiuti do Paraná com uma monografia sobre a volta das ânforas às vinícolas da atualidade. “O resgate da ânfora valoriza técnicas antigas de vinificar, mas com o conhecimento da enologia moderna. Antigamente era intuitivo, hoje os enólogos sabem como funciona a fermentação e como corrigir caso algo dê errado”, explica Gabardo.
A pesquisa de Gabardo foi em duas vinícolas: a argentina Zorzal, dos irmãos Michelini, e a chilena De Martino. “A filosofia de trabalho destes produtores não se encerra no recipiente de vinificação. Eles negam um processo industrial de elaboração do vinho e defendem uma bebida feita em escala humana. A adoção de ovos de concreto também está diretamente ligada ao manejo biodinâmico do vinhedo e revestido de um discurso simbólico forte: o ovo é vida, o ovo é a forma perfeita”, analisa.
A técnica reconfigura o exclusivo no mundo do vinho. Enquanto um tanque de inox tem volume a partir de 5 mil litros, um ovo de concreto pode conter 600 ou 900 litros – o que explica o valor acima da média de alguns rótulos.
Depois da onda do Novo Mundo de fazer vinhos com passagem por madeira, nos últimos dez anos os vinicultores acreditam em vinhos “sem maquiagem”, com aromas e sabores próprios da fruta. “Há uma tendência mundial de fazer vinhos fáceis, agradáveis, fluídos na boca, sem serem pesados ou densos. Para conseguir isso, deve se deixar um pouco o barril de lado, e ver de que outra forma é possível fazer vinhos com estrutura, volume de boca e um bom final, mas sem intervenções para que o vinho seja um reflexo mais claro da região de onde vem”, disse Juan Pablo Michelini à Gabardo durante seu trabalho de campo.
Das vinícolas argentinas que aderiram ao uso dos ovos está a Passionate Wine, Gen del Alma, Zorzal, Super Uco, Cara Sur e Família Zuccardi, esta usa apenas ovos de concreto na vinificação.
Outras tendências
Colado ao movimento de retomada dos recipientes ovais de antigamente estão práticas tidas como alternativas na vitivinicultura, como cultivo biodinâmico, uvas criolas, co-fermentação (misturar duas variedades durante o estágio de fermentação), fermentação espontânea (usando os micro-organismos presentes na casca da fruta), vinhos sem filtrar e baixa adição de sulfito (conservante), aponta Gabardo.
A vinícola Don Giovanni está adaptando pouco a pouco seu vinhedo para ser totalmente orgânico e biodinâmico. Há três anos um hectare dos 17 hectares plantados recebe preparos à base de plantas medicinais no lugar de herbicidas e similares. O tratamento é de todo o ambiente e não apenas da planta. “Em pouco tempo vemos que a fauna retorna e a planta fica menos vulnerável”, explica Ayrton Giovannini, proprietário da vinícola.
No Chile e na Argentina, os enólogos trabalham com uvas criolas, como a chilena País e a argentina Criolla Chica. “É um resgate das uvas jesuítas espanholas, que foram consideradas de menor qualidade enológica. Elas representam um passado colonial dos países andinos e nunca foram valorizadas. A uva branca argentina Torrontés é um cruzamento da Criolla Chica com Moscatel hoje ela é uma uva ícone da Argentina”, exemplifica Gabardo.
Conheça alguns vinhos encontrados no Brasil:
Ovo de concreto
Zorzal EGGO 2012 Malbec (Argentina)
Passionate Wine Diverso Syrah (Argentina)
House Casa del Vino Despechado Pinot Noir 2014 (Chile)
House Casa del Vino Bestiario Malbec e País 2013 (Chile)
Antiyal Carmenère 2013 (Chile)
Montsecano Refugio Pinot Noir 2011 (Chile) – cerca de 6 mil garrafas
Montsecano Refugio Pinot Noir 2010 (Chile) – cerca de 2 mil garrafas
Ânfora
Paulo Laureano Tradições Antigas Tinto 2014 (Portugal)
De Martino Viejas Tinajas Cinsault 2013 (Chile)
Susana Esteban com Filipa Pato e William Wouters Sidecar 2015. Blend de castas tradicionais da Serra de São Mamede e Baga da Bairrada (Portugal) – 1.700 garrafas
Gravner Breg 2016 (Itália)