Bebidas
A amarga IPA desponta como o principal estilo de cerveja artesanal do Brasil
No Dia Internacional da cerveja, 3 de agosto, vale o destaque de um estilo que tem se destacado dentro e fora do Brasil nos últimos 10 anos: as cervejas India Pale Ale. Amargas e muito aromáticas, conquistaram de vez o paladar dos bebedores. Depois das chamadas cervejas mainstream – categoria que abrange aquelas mais vendidas, basicamente dos estilos American Lager ou American Light Lager –, a IPA é a mais popular. Ou seja, não é exagero dizer que ela é a mais pedida entre as cervejas artesanais hoje no nosso país e no mundo.
Uma conta simples pode provar o domínio da IPA no aspecto global. A produção desse estilo de cerveja nos Estados Unidos em 2016 chegou a cerca de 28% do mercado de cervejas artesanais, que por sua vez representava 12,1% do market share do segundo maior produtor de cervejas do mundo (22,135 bilhões litros no mesmo ano). Ou seja, foram 750 milhões de litros só de IPA, ou quase 3,39% de toda a cerveja produzida no país, segundo os números da Brewers Association, que representa as microcervejarias norte-americanas. Para efeito de comparação, é o mesmo volume total da produção de cervejas de Porto Rico, Letônia ou Marrocos.
O Brasil é o terceiro maior produtor de cervejas do mundo, com 13,334 bilhões de litros em 2016, mas números sobre cervejas artesanais ainda são raros. No entanto, uma pesquisa recente do e-commerce de cervejas Clube do Malte mostrou que a IPA é o estilo preferido entre os mais de 2,8 mil bebedores de cerveja artesanal consultados. Numa pergunta de múltipla escolha sobre a preferência por diversos tipos de cerveja, ela ficou com 71,2% dos votos. “A gente já tinha esse ‘feeling’ antes mesmo da pesquisa por causa das vendas altas. Mas a gente não achava que seria o primeiro. E ainda mais: entre os estilos votados na pesquisa, os três primeiros são de cervejas consideradas amargas e lupuladas”, conta Douglas Salvador, sócio-proprietário da marca.
Motivos lupulados
Mas quais seriam os motivos dessa popularidade? E ainda mais em um país tão acostumado com tudo muito doce, como uma cerveja de alto amargor se torna a mais popular entre os estilos de cervejas artesanais?
“A IPA não é só amargor”, assinala Rafael Moschetta, sócio-proprietário do brewpub Weird Barrel, em Ribeirão Preto (SP), e criador do festival de cervejas IPA Day Brasil. O evento, que reúne anualmente cerca de 3 mil pessoas para um dia inteiro de IPAs, se tornou um dos mais importantes e esperados do país.
“Ela é a primeira cerveja que marca uma diferença realmente significativa entre a cerveja mainstream e a artesanal”, diz Moschetta. Segundo ele, a pessoa que está entrando no universo das cervejas artesanais normalmente prova uma boa Pilsen e uma Weiss, o que não traz grandes surpresas. “No entanto, o primeiro copo de IPA impressiona. A maior parte se encanta e se entrega a todo aquele aroma cítrico que nunca viu em uma cerveja antes”, explica. A partir dali há também um sentimento de pertencimento. “A IPA representa, de certa forma, o movimento da cerveja artesanal. Quando ele passa a tomar esse estilo, se sente um real consumidor de cerveja artesanal”, completa.
Essa diferença sensorial grande é também apontada por Leonardo Sewald, sócio-proprietário da Seasons, de Porto Alegre (RS). “A IPA usa bastante de um ingrediente que é o principal contraponto à cerveja de massa, por ser mais caro: o lúpulo”, conta. “Não é todo mundo que gosta do amargor, mas quando aprecia é um caminho sem volta. A IPA é aquela locomotiva que chega arrebentando e abrindo caminho para a cerveja artesanal como um todo”, explica.
Leonardo Satt, sócio-proprietário da paulistana Cervejaria Dogma concorda que boas IPAs são muito mais do que só amargor. “Elas são muito refrescantes”, diz. E enfatiza que é um tipo de cerveja que agrada desde fãs recém apresentados a este universo até os mais veteranos. “Chega um momento em que as pessoas deixam de beber Weiss, por exemplo. Mas nunca vi alguém dizendo que deixou de beber IPA”, conta. Satt também diz que cerca de 80% das vendas da Dogma são cervejas do estilo IPA.
Douglas Salvador, do Clube do Malte, diz que essa grande variedade de perfis de fãs da cerveja que bebem IPA também apareceu na pesquisa. Todos os diferentes tipos de perfis que eles criaram a partir dos dados recolhidos têm como estilo preferido o IPA. “Esse talvez seja um dos motivos do crescimento desse estilo de cerveja. Há clientes com todo tipo de gosto, mas parece que o estilo IPA agrada a todos eles”, observa.
Premiada em várias edições do IPA Day pelas suas cervejas, a Bodebrown tem longa trajetória no caminho do lúpulo. Samuel Cavalcanti, sócio-proprietário da cervejaria curitibana, conta que o primeiro registo no país de uma Double IPA – versão mais amarga, encorpada e alcoólica desse tipo de cerveja – foi feito pela cervejaria curitibana.
Cavalcanti diz que também acha que a IPA é a mais buscada pela descoberta que representa e até mesmo pelo marketing feito em torno do estilo. “IPA também é uma marca que está sendo produzida por todas as cervejarias do mundo e todo mundo está bebendo. Isso atiça a curiosidade”, conta. Ele diz ainda que de todos os produtos da Bodebrown, pelo menos 14 são IPAs, entre eles uma Brut IPA, também chamada de Sparkling IPA, tendência que desponta atualmente na Califórnia de uma cerveja amarga, muito seca e efervescente, como um espumante.
As muitas IPAs
A grande popularidade da IPA no mundo fez com que surgissem diferentes variações do estilo que, apesar de ter crescido nos Estados Unidos, nasceu na Inglaterra no final do século 16. Hoje existem vários, alguns catalogados nos guias e outros que despontam como tendências. Foi o que aconteceu com as chamadas New England IPAs, também conhecidas como Hazy IPAs ou Juicy IPAs, que entraram para os dois principais guias mundiais esse ano.
“É normal que se busque novos estilos e variedades para a cerveja favorita. Mas é também saudável entender a incursão pelo universo da cerveja como uma jornada, na qual o objetivo não é o estilo, mas a viagem por todos eles”, diz Moschetta.
Sewald também vê com bons olhos a variedade de IPAs, mas diz que é algo para ser usado com parcimônia no país. “As variações mostram o quanto somos apaixonados por essa cerveja. Mas temos que lembrar que estamos só começando na cerveja artesanal aqui no Brasil. O público recém descobriu a IPA e se a gente acelerar mais do que o mercado permite, podemos fazer com que ele perca o interesse”, considera.
O mais recente levantamento do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) divulgado no início de 2018 mostra que são 679 fábricas de cerveja no país e cerca de 8,9 mil registros de produtos. Apesar da falta de números, os especialistas falam que o market share da cerveja artesanal no país ainda é de menos de 1%. “Temos que ir com parcimônia e muita educação”, finaliza Sewald.
Harmonizando com o estilo
Apesar de muito popular, em razão do amargor elevado, as IPAs não são simples de harmonizar, diz a sommelière e mestre cervejeira Kathia Zanatta, sócio-proprietária da escola de cerveja Instituto da Cerveja Brasil. Esse gosto amargo pode “passar por cima” das combinações e estragar o equilíbrio da harmonização. “Para lidar com ele temos que levar em consideração principalmente a gordura do alimento e o umami”, diz a sommelière.
Umami é o quinto gosto básico que pode ser detectado pelas nossas papilas gustativas, ao lado de ácido, doce, salgado e amargo. Ele é a reação ao ácido glutâmico, um aminoácido, que está presente em proteínas. “Alimentos como carnes, cogumelos, tomate, molho de soja e queijos maturados são ricos em umami. E o amargor de lúpulo tende a enfatizar esse gosto”, explica Kathia. De outro lado, a gordura tende a suavizar o amargor, trazendo melhor equilíbrio para as combinações.
A harmonização clássica para uma IPA é o hambúrguer, que tem muito umami da carne, gordura suficiente para contrastar o amargor, além do dulçor do pão, rico em carboidrato, que ajuda a amenizar ainda mais esse gosto agressivo. “Outras combinações que podem ficar boas são uma torta de frango de massa podre ou até costelinhas de porco no barbecue, muito rica em umami”, diz.
Vale ressaltar que o amargor de lúpulo enfatiza a pimenta. Ou seja, é bom ter cuidado ao combinar esses elementos. “A não ser que seja o objetivo da harmonização, essa picância excessiva provocada pelo contraste entre pimenta e lúpulo pode não ser muito agradável, principalmente para quem não gosta de pimenta”, completa.
A (verdadeira) história da IPA
Outro recorde que poderia ser atribuído a IPA é de ter a história mais contada em mesas de bares e rodas de amigos de todas as cervejas artesanais. Segundo ela, a India Pale Ale teria sido inventada em 1760 por George Hogdson, um cervejeiro londrino proprietário da cervejaria Bow, para superar um problema: a cerveja estragava quando era mandada para a Índia, então colônia britânica, numa viagem de cerca de três meses de navio. Hogdson, então, resolveu colocar mais lúpulo na bebida, um poderoso conservante natural, e ela finalmente chegou em condições de consumo e foi muito apreciada.
No entanto pesquisas recentes do jornalista britânico Martyn Cornell, de um lado, e do mestre cervejeiro Garret Oliver no livro “The Oxford Companion to Beer”, do outro, mostram que ela não é tão correta assim.
De acordo com Cornell, em 1711 tanto cervejas do estilo Porter quanto Pale Ale já eram exportadas para a Índia com sucesso. Sendo assim, o problema original não existia. Além disso, em 1760 os cervejeiros ingleses já sabiam que era necessário fazer a cerveja com mais lúpulo para que aguentasse viagens longas.
Ou seja, não há indícios de que esse estilo tenha sido inventado por alguém. É bem provável que tenha se desenvolvido e aprimorado com o tempo. Hogdson efetivamente exportou cervejas para a Índia por meio de parcerias com capitães de navios mercantes. Logo, concorrentes teriam aparecido, principalmente cervejarias da cidade de Burton upon Trent, que produziram versões mais secas e com maior sensação de amargor que as de Hogdson.
Até então essa cerveja era chamada de Pale Ale e preparada para o mercado da Índia. O nome East India Pale Ale só aparece pela primeira vez em um jornal de Sidney, na Austrália, em 1829, também colônia britânica. Em terras inglesas, aparece somente em 1835 no jornal Liverpool Mercury.
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