Bebidas
Como o aquecimento global pode acabar com o seu cafezinho
Muitas xícaras de café devem ter passado por suas mãos desde que o aquecimento global foi considerado a pior ameaça à bebida mais consumida no planeta. Os primeiros avisos chegaram em 2012, quando a Organização das Nações Unidas, a ONU, alertou sobre a possível extinção da maior parte das plantações cafeeiras no mundo.
A organização reforçou o alerta em 2014 e, três anos depois, foi a vez do World Coffee Research Institute (WCR). Segundo últimas previsões da entidade norte-americana sem fins lucrativos, 79% das regiões de cultivo de café no globo correm o risco de se tornarem improdutivas até 2050 devido ao aumento previsto de 2˚C na temperatura da Terra.
O cenário é alarmante. Porém, segundo alguns especialistas, não representa o fim do café. Nas piores condições, daqui a 30 anos a bebida de todas as manhãs – e tardes e noites e fins de semana – se tornará bem mais cara. E terá um sabor bem diferente daquele ao que estamos acostumados.
Café antigo demais
Para os pesquisadores do WCR, a ameaça ao fruto tem se intensificado por uma razão de contexto: em todos os cantos do planeta, bebe-se café ultrapassado. Não importa se o líquido recém-filtrado na térmica tenha vindo de um pacote de supermercado ou de uma embalagem premiada feita com grãos 100% arábica. As espécies e variedades atuais não são compatíveis com os problemas ambientais do século 21.
“São variedades criadas para o século 20. Elas dão ótimos cafés, mas são muito suscetíveis à ferrugem e a outras pragas, tampouco toleram bem o calor. Com o aumento das temperaturas, os produtores começarão a ter problemas. Eles precisam de melhores opções”, diz Hanna Neuschwander, escritora e diretora de comunicações do World Coffee Research Institute.
A intensificação da demanda mundial, provocada por movimentos batizados de “ondas do café”, foi a grande responsável pela necessidade de um fruto que se molde às condições atuais – uma sociedade cada vez mais consumidora em um planeta cada vez mais instável ecologicamente. Estima-se que consumo mundial da bebida aumentará 2,1% até o fim deste ano em comparação a 2016 e 2017, com 165,19 milhões de sacas previstas. Até 2050, a previsão é que a demanda duplique.
O maior otimismo do WCR é apostar em variedades altamente adaptáveis às adversidades climáticas. A entidade tem trabalhado há anos e já tem, para as próximas décadas, pelo menos três alternativas em estudo para recriar uma versão do café arábica que supere quaisquer níveis de resiliência e seja tão rica e complexa em termos de sabor quanto os microlotes mais raros. “Vamos cruzar duas espécies primas, C. canephora e C. eugeniodes. Foi a partir delas que o arábica surgiu, cerca de 10 mil anos atrás”.
Os resultados iniciais são surpreendentes. “Criamos variedades híbridas capazes de garantir mais de 90 pontos em competições”, garante Neuschwander. O último Nicaragua’s Cup of Excellence é o exemplo mais recente da conquista: dos 20 cafés mais premiados do concurso, realizado em 2018, nove foram produzidos com os experimentos.
Calor nas fazendas
Outra alternativa para salvar o café do aquecimento global seria mudar as regiões de plantio, segundo os pesquisadores. As secas constantes e as irregularidade das chuvas, além das altas temperaturas e pragas, seriam suficientes para extinguir safras inteiras. O problema é que os sintomas já têm sido notados há anos.
“A situação tem mudado bastante. A escaldadura está mais forte, as lavouras estão requeimando as folhas com maior facilidade e as chuvas estão muito mais irregulares”, diz o engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Pró-Café, de Minas Gerais, Alysson Vilela Fagundes. Filho de cafeicultores, ele cresceu entre os frutos e trabalha na área há mais de 20 anos. Das últimas décadas para cá, tem visto as condições do Brasil, o maior produtor de café do mundo, mudarem a cada ano.
Na Guatemala, que também detém boa parte da produção mundial, o cenário não é diferente. “O aumento da temperatura alterou as condições de produção e a qualidade do produto final. É como uma pessoa trabalhar em ambiente climatizado recebendo nutrição adequada e mudar para um local com condições adversas com a mesma porção de alimento. Sua produtividade e qualidade não serão as mesmas”, exemplifica Jorge Luis Barrios Castillo, engenheiro agrônomo e especialista em cafés há 35 anos.
Com o calor, surgem as pragas. Principalmente a ferrugem, mais agressiva e recorrente nos cafezais. “Nas últimas décadas, a temperatura média da América Central subiu 2°C e a ferrugem, que nunca chegava lá, subiu o morro. De uma hora para outra, os produtores passaram a ter um problema que não sabiam como resolver”, conta Robert Weingart Barreto, agrônomo e pesquisador da Universidade Federal de Viçosa.
Desde 2014, em parceria com ONGs africanas, o pesquisador está em busca de organismos capazes de combater o fungo em plantações de todo o mundo. Em janeiro, 900 mudas de 20 variedades resistentes às mudanças climáticas foram plantadas em Alstonville, no norte de New South Wales, na Austrália. O teste, feito em parceria do World Coffee Research com cientistas da Southern Cross University, terá resultados em cinco anos. Segundo o jornal britânico The Guardian, a Oceania poderá se tornar um dos novos produtores mundiais de café.
O sabor do café do futuro
Assim como o vinho, que ganha características de acordo com o terroir onde as uvas são cultivadas, o café também desenvolve particularidades sensoriais dependendo da região em que é plantado. Possíveis modificações de solo e condições climáticas, portanto, têm impacto direto no sabor final da bebida. É possível prever como será o gosto do café nos próximos anos?
A resposta é negativa, mas Léo Moço, proprietário do Barista Coffee Bar, em Curitiba, e detentor do título de melhor barista do país por três anos, explica que a adaptação ocorrerá naturalmente. A sociedade se moldará ao novo perfil do fruto – seja ele mais ou menos ácido, muito ou pouco encorpado. Ele usa a própria experiência como exemplo.
“Trabalho com café desde 2005 e, daquela época para cá, o perfil do café mudou drasticamente. No cerrado, era uma bebida com bastante doçura, baixa acidez. Hoje, ele perdeu o toque de chocolate e ficou muito frutado, com mais acidez”, explica.
As diferenças, segundo o barista, ocorreram devido à demanda. “O mercado mudou. Não se falava em sabor, em complexidade. Hoje, a gente vende o sabor frutado, uma acidez tartárica que lembra o vinho. Essa especialização levou um conhecimento a mais para o produtor e ele mudou o perfil sensorial do café. Os paradigmas do que é um bom café estão sempre mudando.”
Sensacionalismo?
Apesar dos alertas, algumas pessoas duvidam da gravidade da situação. Lucas Tadeu Ferreira, chefe de transferência de tecnologia da Embrapa Café e ex-diretor do departamento de café do Ministério da Agricultura, é uma delas. “É um movimento natural, eles ficam fazendo esse terrorismo. O aquecimento global não tem interferido em nada, pelo contrário. Está aumentando a produtividade do setor”, opina.
Ele refere-se a 2018, ano em que o Brasil bateu recorde histórico de produção. Foram 61,65 milhões de sacas produzidas, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).
O aumento de 37,1% em relação a 2017, explica Ferreira, ocorreu não só devido ao fenômeno de bienalidade (característico da espécie arábica, que oscila em quantidade a cada dois anos), mas também à melhora da tecnologia. “Tem muita especulação em torno das mudanças climáticas. Não compactuo com esse pensamento”, afirma.