Bebidas
Colares, a região de Portugal onde os vinhedos crescem na areia
Colares, Portugal – Os vinhedos desta pequena região vinícola, a oeste de Lisboa, na costa do Atlântico, parecem criaturas saídas do fundo do mar.
Mantidos baixos para evitar o vento inclemente e incessante que vem do oceano, lembram cobras verdes serpenteando ao longo da areia. Na verdade, é como se as vinhas de outras áreas mais convencionais tivessem vindo para a praia, de férias, e se esparramado à beira do mar.
Colares, uma das zonas vinícolas mais peculiares do mundo, tem um ar modorrento de atemporalidade. As uvas são plantadas hoje exatamente como há séculos, com a diferença que atualmente são em número bem menor. Na década de 1940, as videiras cobriam mais de mil hectares deste solo arenoso.
Desses, só restaram vinte, espalhados sobre um trecho estreito a oeste de Sintra, onde a família real portuguesa se protegia dos verões abafados da capital nos palácios coloridos e refrescados pelo vento. Praticamente todo território cultivado se perdeu, nas décadas de 1960 e 1970, para a expansão suburbana.
Ainda assim, Colares produz um vinho que talvez seja o mais peculiar do país. Os tintos, feitos a partir da uva ramisco, possuem alto teor de acidez e um tanino poderoso, tanto que precisam envelhecer durante anos nas adegas antes de serem comercializados. A safra atual no mercado é a de 2007.
Apesar de toda a intensidade inicial, eles ficam mais suaves após dez anos de envelhecimento, revelando uma complexidade graciosa e um caleidoscópio de sabores: ervas, bálsamos e sal. O teor alcoólico é baixo, raramente chegando a 12,5 por cento.
Os brancos, feitos a partir da malvasia de Colares, geneticamente distinta das outras da mesma cepa, são frescos, ricos e também possuem notas de ervas e salinas, com profundidade e caráter. Não precisam de um período tão longo de envelhecimento quanto os tintos; a safra atual no mercado é de 2012.
Há muito tempo se diz que os vinhedos de Colares, a região produtora mais ocidental da Europa continental, estão à beira da extinção, condenados pelo apetite insaciável do mercado de imóveis litorâneos – mas, pelo menos por enquanto, a ameaça parece estar sob controle.
Segundo Francisco Figueiredo, vinicultor e enólogo que administra a Adega Regional de Colares, cooperativa que produz a grande maioria dos vinhos locais, a crise financeira de 2008 diminuiu a febre imobiliária. Parte da região pertence ao distrito de Sintra, elevado a Patrimônio da Humanidade pela Unesco, e parte está dentro de um parque, ou seja, protegida da expansão urbana.
De uns anos para cá, mais ou menos dois hectares passaram a ser cultivados e em breve iniciarão a produção, no primeiro sinal de crescimento em Colares em muito, muito tempo. E o interesse pelos vinhos dali também aumentou.
“Estou um pouco mais otimista”, confessou Figueiredo, enquanto caminhávamos entre os vinhedos, em junho. “Há mais interesse vindo do exterior. Andávamos meio esquecidos.”
Mas nem sempre foi assim. No final do século XIX, os vinhedos europeus foram dizimados pela filoxera, que destruía as raízes, mas os de Colares não foram afetados porque a praga não consegue viver na areia – e, de repente, seus vinhos se viram em grande demanda.
Eventualmente a filoxera deixou de ser uma ameaça por causa dos cruzamentos das cepas europeias com amostras norte-americanas, imunes ao inseto, e as videiras puderam ser replantadas. Praticamente todas as espécies do Velho Mundo hoje são enxertadas, mas as de Colares continuam com as raízes intactas.
No início do século XX, esse detalhe era uma indicação da pureza e da qualidade de sua bebida. Produtores e mercadores inescrupulosos de outras regiões usavam e abusavam das fraudes, “pegando emprestado” o nome da região. Em 1934, as autoridades decidiram que, para evitar enganações, só os vinhos produzidos pela cooperativa poderiam ser chamados de Colares. E essa lei vigorou até 1994.
Segundo Figueiredo, atualmente só dois produtores ainda fazem o Colares: na verdade, a Adega Viúva Gomes, único outro rótulo que vi sendo comercializado nos EUA, além dos da cooperativa, não produz mais o vinho. Em vez disso, compra da entidade para envelhecê-lo em sua própria adega antes de engarrafá-lo, o que, pelo visto, faz diferença. Suas bebidas possuem uma característica sutil, principalmente o branco, que sai da garrafa ainda mais salgado do que o original.
Tudo o que envolve o cultivo da ramisco e da malvasia é sinônimo de trabalho árduo. Para plantar as videiras, os produtores primeiro têm que cavar trincheiras na areia, que podem ultrapassar 4,5 metros de profundidade, até chegar à argila calcária que ali se encontra. Isso porque as raízes, para sobreviver, precisam se desenvolver nesse meio. Conforme as plantas vão ficando mais altas, os vinicultores vão aos poucos preenchendo os espaços na areia, sem dúvida auxiliados pelo vento incessante.
Só que ele é inimigo dos vinhedos, segundo Figueiredo, pois o sal que carrega pode queimar as folhas. Assim, além de mantê-los a uma altura pequena, é preciso também plantar macieiras nos intervalos, erguer muros de pedra e criar barreiras feitas com pés da cana.
Quando os cachos ficam cheios, os vinhedos têm que sair da areia; então, são erguidos, para facilitar a circulação de ar. Os produtores conseguem isso colocando estacas de madeira sob as plantas, cuidadosamente, como se fossem cavaletes na estrada.
Várias outras uvas, como a castelão e a tinta roriz (tempranillo na Espanha), são cultivadas com o método convencional, no solo argiloso da área de Colares. A bebida resultante, classificada como Vinho Regional de Lisboa, é até bastante boa, mas só a feita a partir da ramisco ou da malvasia cultivadas na areia pode ser chamada de Colares.
A primeira, que compõe 75 por cento das plantações da região, adaptou-se de forma soberba a seu ambiente pouco natural.
“Nunca ouvi falar da ramisco cultivada em outro lugar, e olha que muita gente já tentou”, disse Nuno Ramilo, cujo negócio, a Casal do Ramilo, vem produzindo vinhos em terreno argiloso desde 1937. Ele e o irmão, Pedro, quando assumiram a propriedade da família, decidiram que iam investir no Colares também.
“Olhamos para a nossa região, com aquela areia toda, e resolvemos imitar o que o pessoal costumava fazer ali”, revelou Nuno.
Assim, em 2015, a dupla plantou cerca de dois hectares de uvas em um lote arenoso e castigado pelo vento, onde sua mãe certa vez quis construir um condomínio, projeto interditado pelo governo. Criativo, Nuno foi além, cultivando as videiras em cabos a pouca distância do solo, o que eliminou o trabalho de ter que erguê-las depois.
“Quem quiser trabalhar em Colares precisa plantar porque o pessoal mais antigo que é dono dos vinhedos não vai viver para sempre”, alertou.
No galpão bem ventilado da cooperativa, cerca de 75 tanques imensos de mogno importado do Brasil e outras “madeiras exóticas”, como Figueiredo as chama, são um lembrete do que era a produção nos anos 40; hoje, com exceção de alguns poucos, a maioria não têm uso.
O mesmo vale para a Viúva Gomes, onde contêineres de dez mil litros são exibidos como peças de museu.
“Seria bom para a região, mas não temos mais dez mil litros de vinho para pôr aí”, exclamou Diogo Baeta, que ajuda o pai, José, a administrar a Viúva Gomes. Eles envelhecem mil litros por ano em tonéis menores.
Baeta disse que está satisfeito com a produção de Figueiredo, mas espera um dia poder produzir ele mesmo.
“Francisco e eu temos a mesma filosofia em relação à produção do vinho regional; é preciso ser feito à moda tradicional, mas meu objetivo é um dia poder fazer o meu”, confessou.
Tradicionalmente, os vinhos Colares são vendidos em garrafas de 600 ml, um tamanho estranho, que inclusive é ilegal em alguns mercados, incluindo os EUA. Por isso, as novas versões, tanto tinta como branca, são comercializadas em frascos de 500 ml. Os preços variam de US$25 a US$45.
“É uma homenagem às garrafas antigas, mas também um reconhecimento de que não há muito vinho sendo comercializado. Em vez de encarecer o produto, reduzimos o tamanho do frasco”, concluiu Figueiredo.
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