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Vinícola em Bordeaux ara a terra com cavalos e faz vinhos biodinâmicos
Saint-Cibard, França – Os franceses têm uma noção de que não existem palavras apropriadas em inglês para conversar sobre um vinho delicioso. Por exemplo, “digestibilité” ou digestibilidade (digestibility, em inglês), uma palavra simples que, como “terroir”, significa algo muito mais complexo.
A digestibilidade começa com o fato de o sabor ser delicioso, mas também indica vinhos fáceis de beber sem que pesem demais. É um prazer imediato, sem mediação, que, no entanto, pode ser complexo e contemplativo.
O termo é frequentemente usado para vinhos naturais, produzidos apenas com uma intervenção mínima. Essa é uma das razões por que você raramente vê o termo aplicado em Bordeaux, região vinícola onde os melhores vinhos, independentemente do preço, devem estar entre os mais digeríveis no mundo, mas que muito frequentemente são afetados por excessos na vinificação e de reverência.
Aqui neste planalto rochoso perto de uma pequena cidade, a leste do Pomerol e de Saint-Émilion, no entanto, fica o Château le Puy, onde a família Amoreau vem plantando uvas há mais de 400 anos. A vinícola produz Bordeaux soberbos que simbolizam a noção de digestibilidade.
Na verdade, a digestibilidade faz parte da patente do Le Puy. Jean Pierre Amoreau, o atual guardião da propriedade – com sua mulher, Françoise, o filho, Pascal, e a filha, Valérie –, contou-me em uma visita a Le Puy na primavera que possui três requisitos para um bom vinho.
Primeiro, o vinho precisa refrescar. Segundo, o primeiro gole tem que causar boa impressão. E terceiro, deve ter digestibilidade.
Como acontece com os melhores vinhos de Bordeaux, os da Le Puy são marcados pela pureza, precisão, leveza e uma facilidade ao beber que encoraja outro gole. Também possuem intensidade de sabor, apesar de sua elegância, uma combinação mais associada com outra grande região do leste da Franca.
“É o melhor vinho Borgonha de Bordeaux”, afirmou Steven Hewison, genro de Amoreau, responsável pela produção.
Os aproximadamente 50 hectares de vinhedos da Le Puy, que têm em média 50 anos de idade, estão plantados em uma mescla de solos de calcário, argila e pedras certificados como biodinâmicos. A Le Puy não é uma convertida recente a essa maneira de viticultura orgânica hoje em moda.
Quase todas as plantações eram orgânicas até depois da Segunda Guerra Mundial, quando a agricultura química se tornou a regra. Mas não na Le Puy, onde o solo nunca recebeu uma gota de fertilizantes e herbicidas.
“Meu avô era muito pão-duro para comprar produtos químicos”, disse Amoreau.
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Agora, ele está entre os defensores mais apaixonados da biodinâmica no sentido verdadeiro da teoria, que exige que as fazendas sejam propriedades diversas e independentes nas quais tudo o que é necessário para um meio ambiente saudável de plantação é um ecossistema. Essa não é a versão comprometida que muitos produtores de uvas são obrigados a praticar.
Na maioria das regiões vinícolas, especialmente áreas prósperas como a Borgonha, onde a viticultura biodinâmica é reverenciada por muitos produtores importantes, não é possível se ver nada além de monótonos vinhedos de ponta a ponta dos terrenos.
Uma fazenda verdadeiramente biodinâmica precisa ser uma policultura, formada não apenas de plantações diversificadas, mas de áreas selvagens, onde pássaros, insetos e mamíferos benéficos vivem. Essa diversidade biológica teoricamente cria na fazenda relacionamentos simbióticos que mantêm pestes e doenças sob controle naturalmente ao invés de ser necessário recorrer a meios artificiais.
Junto com as vinhas, a Le Puy tem 60 hectares de florestas e, entre outras coisas, figueiras, avelãs e colmeias.
“O ecossistema é ainda mais importante do que a biodinâmica”, explicou Amoreau. “Quando você trabalha em uma monocultura, ela muda a fauna. Você acaba encontrando mais parasitas do que predadores. As áreas selvagens possuem mais predadores. É preciso ter essas áreas em volta dos vinhedos para manter o equilíbrio.”
Bordeaux tem adotado lentamente a vinicultura orgânica e biodinâmica. Devagar, porém, vários dos chateaus importantes como o Pontet-Canet, em Pauillac, e o Palmer, em Margaux, começaram a adotar a filosofia. A Le Puy sempre fez isso.
Amoreau acredita que ela é crucial para manter a leveza arejada do solo, que segundo ele afeta diretamente sua vida microbiana e, no final, a qualidade do vinho. Minhocas, micróbios e bactérias cavam passagens na terra permitindo que as raízes mergulhem mais profundamente no calcário, o que ele afirma contribuir para a elegância e a fineza dos vinhos. Para isso, a Le Puy tem trabalhado de perto com Claude e Lydia Bourguignon, que estão entre os principais especialistas do mundo em solo e na sua relação com os vinhos.
Em um esforço para manter a leveza do solo, o Château le Puy agora usa quatro cavalos para arar cerca de um terço de suas vinhas ao invés de tratores pesados, que podem comprimir e endurecer a terra. Nesses terrenos, cada terceira linha não é arada para que os tratores tenham um caminho para pulverizar preparados biodinâmicos como quartz moído e urtigas. A linha não arada muda todos os anos para diminuir a compactação do solo. Eventualmente, a fazenda espera usar cavalos em toda a propriedade.
“É preciso ter vida no solo e no meio ambiente para conseguir vida nas parreiras”, explicou Harold Langlais, produtor associado de vinhos que também é sócio da Le Puy.
Quando pedi para descrever sua filosofia geral, Amoreau respondeu: “Temos uma pessoa na adega e 20 nas vinhas.” No entanto, o processo de produção do vinho também é importante.
O da Le Puy se baseia em leveduras nativas e fermentações fáceis, evitando a extração excessiva de taninos e cores das cascas e das sementes, que podem fazer vinhos poderosos, mas duros, ou seja, com menos digestibilidade.
“Preferimos a infusão à extração”, explicou Langlais.