Bebidas
Cervejas com frutas e especiarias são a cara da primavera; conheça algumas
Malte, lúpulo, fermento e água — com quatro ingredientes é possível criar centenas de sabores únicos daquela que veio a ser a bebida mais consumida do mundo, atrás apenas da água e do chá: a cerveja. Mas há cerca de dez anos era difícil encontrar no Brasil uma grande variedade de insumos para que os cervejeiros de panela fizessem suas criações variando os ingredientes-base.
“A maior dificuldade era essa. Você tinha poucos recursos para produzir, não é como hoje que existe muita variedade de malte, de lúpulo. Na época, era pouco e raro”, relembra Carlos de Manuel, profissional do marketing que largou a profissão para empreender, em 2011, na área cervejeira. Ele é um dos sócios da Ogre Beer, uma das cervejarias artesanais pioneiras em Curitiba, junto à Bodebrown, Klein, Way Beer, DUM e outras que até hoje conquistam público e mercado.
Faltavam insumos, mas não criatividade para os mestres-cervejeiros. Inspirado nos rótulos e escolas estrangeiras, em especial as belgas, Carlos de Manuel, como grande parte dos cervejeiros de panela, passou a acrescentar outros ingredientes, como frutas, especiarias e o que mais tivesse à mão, em diferentes etapas da fabricação para ver o resultado.
Essa era, inclusive, uma forma de conseguir degustar cervejas especiais que eles só viam no exterior. Pimenta, gengibre, melado de cana e até pinhão foram parar dentro da panela, criando rótulos caseiros depois escoados para um público ávido por novidades. “Para você ter uma ideia do que era o mercado, uma cerveja de trigo já era algo diferente”, aponta Carlos.
Hoje, as prateleiras das cervejarias especializadas, assim como as torneiras de chope, estão cheias de líquidos diferentes. Frutas, especiarias, oleaginosas, café, chocolate e até mesmo o açúcar do leite chegam para somar com o sabor das cervejas- base. E dessas criações nascem novas variações, como a Milkshake IPA — uma bebida que preserva o sabor amargo, frutado e aromático da IPA, só que mais encorpada por conta do acréscimo de lactose e outros aditivos, como aveia e baunilha.
Sede de novidade
Se antes os experimentos eram uma alternativa à falta de insumos- base diferenciados no país, hoje a prática reflete uma demanda de novidades por parte dos consumidores e também uma necessidade de se diferenciar em um mercado cada vez mais competitivo.
De acordo com dados do Ministério da Agricultura, entre 1999 e 2008 o número de cervejarias passou de 199 para 255. Já entre 2008 e 2019, o país ultrapassou a marca de mil fábricas, com uma grande curva de crescimento a partir de 2014. De olho neste segmento que só tende a crescer, a gigante Ambev comprou em 2015 duas cervejarias artesanais, a mineira Wäls e a paulista Colorado, cuja característica principal é justamente criar receitas que levam ingredientes adjuntos brasileiros, como mel, graviola, rapadura e castanha-do-pará.
“De uns três anos para cá que a gente vem cuidando mais intensamente desse segmento, apesar de ele ser pequeno ainda no contexto geral. Mas ele vem crescendo, os números indicam um aumento maior que a média do mercado”, comenta o gerente regional de craft da Ambev, Gabriel Marques. Hoje, apenas 2% do market share brasileiro provém das cervejarias artesanais, o que é pouco perto dos 13% do mercado norte-americano.
Apesar de pequeno em um contexto amplo, o rápido crescimento já foi sentido pelas pequenas cervejarias, em especial em Curitiba, considerada uma das capitais da cerveja artesanal no país. “É muita gente produzindo cerveja. Para se diferenciar, o pessoal está buscando ingredientes diferentes”, afirma Fábio Galvão, sócio do Hop’n’Roll, bar curitibano fundado em 2011 que venceu por três anos consecutivos a categoria
“Melhor Carta de Cervejas” do Prêmio Bom Gourmet. Mais de 800 rótulos diferentes já passaram pelo
bar durante os oito anos de funcionamento — e, a cada ano, novos estilos caem no gosto do público. “É uma linha do tempo. Durante nossos quatro primeiros anos, teve o boom das IPAs. A moda era lúpulo e amargor”, relembra Fábio.
bar durante os oito anos de funcionamento — e, a cada ano, novos estilos caem no gosto do público. “É uma linha do tempo. Durante nossos quatro primeiros anos, teve o boom das IPAs. A moda era lúpulo e amargor”, relembra Fábio.
O estilo virou porta de entrada para o universo das cervejas artesanais, fazendo com que o mercado reagisse à altura. Nas prateleiras, novos rótulos surgiram, elevando a popularidade das Session IPAs, categoria que preserva o amargor do estilo, mas com menor teor alcóolico — são saborosas, suaves e mais fáceis de beber. Depois, uma nova tendência despontou aos poucos. “Uma segunda moda que a gente percebeu foi das Sours. Teve um momento em que elas explodiram. A Way Beer foi uma das pioneiras, fez cervejas com morango, acerola e graviola”, recorda Fábio.
A categoria inclui diversos estilos que fazem uso de leveduras selvagens no processo de fermentação, o que concede um sabor mais azedo às cervejas. Essa acidez permite uma infinidade de combinações com frutas diferentes — e a partir daí, cada ingrediente abria novas possibilidades.
Tudo é possível
Quando falamos sobre cerveja, o limite é a criatividade do mestre-cervejeiro. Ainda que a escolha do ingrediente adicional deva dialogar com o estilo-base, esta é muito mais uma questão sensorial do que uma regra, como explica Kathia Zanatta, sommelière, mestre cervejeira e sócia-diretora do Instituto da
Cerveja.
Cerveja.
“Você pode colocar qualquer especiaria em qualquer cerveja. Existem algumas combinações consagradas, mas os cervejeiros realmente têm muita liberdade para criar”, pontua. Em geral, o equilíbrio entre o dulçor e amargor da bebida se dá através da relação entre o malte e o lúpulo. Já as frutas costumam trazer acidez, seja em natura, em forma de sucos, extratos ou polpa. A etapa em que os
ingredientes extra entram em cena — fervura, fermentação ou maturação — também trazem efeitos diferentes no aroma e sabor da bebida, sendo que as duas últimas fases preservam com mais força as propriedades do ingrediente.
ingredientes extra entram em cena — fervura, fermentação ou maturação — também trazem efeitos diferentes no aroma e sabor da bebida, sendo que as duas últimas fases preservam com mais força as propriedades do ingrediente.
O importante é entender como esse ingrediente extra contribui para o estilo. Cervejas leves e refrescantes pedem frutas e especiarias que possam exaltar essas características. Já as mais alcoólicas
podem se beneficiar de ingredientes mais gordurosos para aumentar sua drinkability. Estilos cujo malte e lúpulo trazem notas que remetem a sabores específicos, como banana, cravo e café, podem levar estes
mesmos ingredientes para realçar o sabor na bebida.
podem se beneficiar de ingredientes mais gordurosos para aumentar sua drinkability. Estilos cujo malte e lúpulo trazem notas que remetem a sabores específicos, como banana, cravo e café, podem levar estes
mesmos ingredientes para realçar o sabor na bebida.
“O objetivo é o equilíbrio entre as características do estilo-base e das frutas e especiarias adicionadas, para que o sabor não suma ou fique enjoativo”, aponta a especialista. Apesar de ser uma tendência atual, a adição de ingredientes às cervejas não é novidade, muito pelo contrário — o espírito cervejeiro sempre foi criativo, curioso e inovador.
Desde sua origem na Antiguidade, já eram acrescidas flores, raízes, mel, canela, açúcar e cascas para alterar as cores, aromas e sabores da bebida. A ideia da cerveja pura, com apenas quatro ingredientes, é inf luência da Lei da Pureza, promulgada em 1516 na região da Baviera, na Alemanha. Essa lei padronizava o processo de produção da bebida e estendeu-se a todo o território alemão em 1919.
Como o Brasil foi bastante influenciado pelas culturas europeias, em especial a alemã e a belga, a ideia
acabou sendo difundida por aqui. “Colocar outras coisas na cerveja é algo muito natural na nossa história. Mas ao longo do século XX vimos uma grande expansão da American Lager, e aí perdemos a história da cerveja tão rica que tínhamos antes”, explica Luís Celso Jr., jornalista, sommelier de cervejas e mestre em estilos formado pelo Instituto da Cerveja.
acabou sendo difundida por aqui. “Colocar outras coisas na cerveja é algo muito natural na nossa história. Mas ao longo do século XX vimos uma grande expansão da American Lager, e aí perdemos a história da cerveja tão rica que tínhamos antes”, explica Luís Celso Jr., jornalista, sommelier de cervejas e mestre em estilos formado pelo Instituto da Cerveja.
Dentre as combinações clássicas está a Witbier, cerveja belga à base de trigo que leva cascas de laranja e sementes de coentro. Cítrica e refrescante, o principal rótulo internacional tem o nome da cidade belga que trouxe ao mundo a cerveja de trigo, a Hoegaarden. No Brasil, várias cervejas estilo Witbier contam
com algum toque brasileiro, como a Jean Le Blanc, da Bastards Brewery, que leva casca de laranja, coentro e capim limão.
com algum toque brasileiro, como a Jean Le Blanc, da Bastards Brewery, que leva casca de laranja, coentro e capim limão.
Outras se diferenciam pelo processo — na Alright Beer, a Witty é feita com três tipos diferentes de laranja descascadas à mão. Outra dupla clássica é misturar às cervejas dos estilos Porter e Stout, amargas, cremosas e escuras, um toque de cacau ou café. A combinação é perfeita porque não altera muito o sabor do estilo-base, apenas potencializa as características aromáticas provenientes do próprio malte, como no caso da Coyol, uma Cream Porter da Morada Cia Etílica com adição de nibs de cacau orgânico.
Para dar um gostinho diferente, frutas vermelhas, como cerejas e morangos, costumam cair bem. A Pérola Negra, cerveja sazonal da Ignorus em parceria com a Bastards Brewery, é um bom exemplo: por conta da popularidade da combinação entre cerveja escura, cacau e cerejas, o rótulo comemora, em 2019, sua 5ª edição.
Na antropofagia brasileira das cervejas, o estilo ganha ainda sabores nacionais com o acréscimo de ingredientes populares, a exemplo da Bier Hoff Coco Cacau Porter, na qual o coco queimado é acrescentado para trazer notas de tostas e harmonizar com os sabores de cacau e café.
Mais uma combinação clássica é a Pumpkin Ale, ou seja, cervejas de estilos variados acrescidas de abóbora. Criada nos Estados Unidos, a bebida surgiu de uma necessidade de buscar açúcares fermentáveis mais baratos do que o malte para a produção da cerveja. No Brasil, um dos rótulos que se destaca no estilo é a Bier Hoff Jerimoon Pumpkin Ale que, além da abóbora, leva especiarias como canela, gengibre, cravo, noz-moscada e pimenta da Jamaica. Entre 2013 e 2017, o rótulo ganhou quatro prêmios, inclusive uma medalha de ouro no South Beer Cup 2014, que é um dos principais concursos cervejeiros da América do Sul.
Para harmonizar
Com a ascensão das cervejas especiais, a bebida aos poucos ganha mais espaço para acompanhar entradas, pratos principais e sobremesas. “O espectro da cerveja é muito mais amplo do que o do próprio vinho”, aponta Carlos, da Ogre Beer. “Você tem cervejas tão encorpadas quanto vinhos, mas você não tem vinhos tão leves quanto a cerveja mais leve”, declara. No caso das cervejas com adição de frutas e especiarias, esse espectro fica ainda maior — cada novo ingrediente trará novas especificações para a harmonização, como explica a sommelière Kathia Zanatta.
“Para harmonizar, sempre temos que levar em consideração a adição desse ingrediente-extra porque ele modifica o estilo-base. Se for uma cerveja com pimenta, por exemplo, a ardência da pimenta vai interferir”. Com uma variedade muito vasta de sabores e aromas, a dica para facilitar combinações gastronômicas no dia a dia é apostar nas harmonizações por equilíbrio, ou seja, combinar pratos suaves com cervejas suaves e pratos robustos com cervejas marcantes.
Uma Witbier, por exemplo, pede alimentos mais leves, como uma salada caprese, peixe branco ou muçarela de búfala. Já pratos mais ácidos podem combinar com cervejas também ácidas, e preparos mais gordurosos com cervejas mais encorpadas e potentes. O importante é estar atento aos ingredientes do prato, em especial aos temperos, para fazer uma associação que não intensifique demais alguns sabores — bebidas mais alcoólicas, por exemplo, podem aumentar a picância dos alimentos e temperos.
Mudanças na legislação
Até julho deste ano, a adição de alguns ingredientes na cerveja não estava autorizada pela jurisdição brasileira. Era o caso de adjuntos de origem animal, como mel, chocolate ao leite e lactose. Não que isso impedisse que rótulos com esses ingredientes fossem produzidos e distribuídos, inclusive nas grandes cervejarias, como o caso da Colorado Appia, feita com maltes de cevada e trigo, acrescida de mel de flor de laranjeira. A diferença é que elas não poderiam ser consideradas cervejas, levando no rótulo o nome de “bebida alcoólica mista”.
Acompanhando o crescimento e as demandas do mercado cervejeiro, um novo decreto presidencial alterou estas disposições legais, o que é considerado uma vitória por parte do segmento e pode abrir caminho para novas mudanças. “A nossa lei de cerveja se preocupa com a segurança alimentar, então tudo que pode ser potencialmente danoso ela proíbe”, explica o especialista Luís Celso Jr. “Mas há um entendimento do Ministério da Agricultura, já há alguns anos, de que a cerveja vem mudando e que a lei precisa se adaptar. Então este é um grande passo desde 2009, data da lei anterior”, completa.
A mudança gerou muita confusão por parte do público consumidor porque o novo decreto retira algumas informações como o limite do uso de outros cereais na produção de cervejas, além da cevada malteada ou do extrato de malte. Mas isso não significa que este limite foi extinto. Antes da publicação deste decreto, a cerveja tinha seu padrão disposto no Brasil em duas normas: o Decreto 6.871/2009 e a Instrução Normativa n° 54/2001.
O novo decreto passa a conter somente a definição da cerveja, enquanto todas as disposições específicas de classificação e rotulagem passam a vigorar somente na Instrução Normativa n°54/2001, conforme explica em nota o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Trocando em miúdos, o que efetivamente muda é que agora os cervejeiros poderão incluir ingredientes de origem animal, aromatizantes, flavorizantes e corantes artificiais, mas mantém-se o limite do uso de até 45% de arroz, milho e outros cereais na produção.
Uma última mudança diz respeito à desburocratização do registro de novas cervejarias artesanais e também de produtos no Mapa, que agora é feito de forma online. “Na época em que a gente começou, chegamos a levar nove meses para ter um registro de cerveja aprovado. Agora é questão de dias”, comemora Carlos de Manuel.
Identidade nacional
A tendência de incorporar ingredientes adjuntos às cervejas rendeu ao Brasil seu primeiro estilo oficial, a Catharina Sour. Como sugere o nome, ela foi criada em Santa Catarina por um movimento de cervejeiros que se uniu para fundar e difundir um estilo nacional pioneiro. Ela é uma bebida de base ácida inspirada na Berliner Weisse, cerveja de trigo alemã, mas acrescida de muita fruta — não necessariamente brasileira.
“Não há algo tipicamente brasileiro nela, apenas essa força do pessoal de tentar criar um estilo nacional”, explica Luís Celso Jr. Desde 2018, a Catharina Sour consta no Beer Judge Certification Program (BJCP), um dos principais guias de estilo mundial, como estilo provisório, ou seja, ainda sob análise. A novidade gerou polêmicas. Alguns defendem que estas cervejas poderiam estar dentro de categorias já existentes, mas o fato de que o título ajuda a trazer visibilidade para os rótulos brasileiros beneficia toda a produção nacional.
Ainda assim, o estilo não surgiu espontaneamente, fruto de uma real tendência no mercado, o que aponta para a falta de uma identidade e tradição próprias. “Nós fazemos cervejas de todas as tradições, não temos amarras em nenhuma delas, apesar de termos uma tendência alemã, por conta da influência dos imigrantes”, comenta Luís Celso.
Mas existe uma tendência que aponta para a criação de uma identidade nacional? Os especialistas acreditam que sim. “Temos indícios no mercado do que poderia ser essa identidade nacional da cerveja, mais para frente, ainda num futuro bem distante, que seria o uso dos ingredientes locais”, pondera
Luís Celso. A percepção é partilhada por Kathia Zanatta: “Leva tempo para que a gente crie uma certa identidade, mas de fato hoje a utilização de ingredientes nacionais é uma tendência. Madeiras, frutas, leveduras nacionais, isso é algo que a gente observa nos cervejeiros.”
Luís Celso. A percepção é partilhada por Kathia Zanatta: “Leva tempo para que a gente crie uma certa identidade, mas de fato hoje a utilização de ingredientes nacionais é uma tendência. Madeiras, frutas, leveduras nacionais, isso é algo que a gente observa nos cervejeiros.”
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