Bebidas
Em alta na comida e na coquetelaria, cachaça mineira vive fase de expansão
Os apreciadores da cachaça tomaram, no fim do ano passado, um susto de engasgar até o bebedor mais experiente. Com a diferença de poucos dias, dois ícones mineiros da branquinha anunciaram o fim das suas atividades.
Em outubro, a cachaçaria Via Cristina, no bairro Santo Antônio, em Belo Horizonte, decretou o encerramento dos trabalhos. A casa era considerada uma das principais da cidade dedicada à caninha, tendo ganhado diversos prêmios graças à sua carta de quase mil rótulos da bebida. Na sequência, o Parque Ecológico da cachaça Vale Verde, em Betim, na região metropolitana da capital mineira, suspendeu, por tempo indeterminado, a visitação ao local. Por lá, era possível acompanhar de perto todo o processo de produção do alambique, que produz um dos rótulos mais famosos de Minas Gerais.
Mas apesar do baque que os dois fechamentos causaram, chefs, especialistas e produtores garantem que o momento da “marvada” não é ruim – pelo contrário. “Claro que os fechamentos causaram apreensão, mas estamos passando por uma fase tão boa, de alta, que não haveria motivo específico relacionado à cachaça para essas duas entidades fecharem. Foi um movimento de mercado, do mesmo jeito que estão abrindo novas casas”, garante José Otávio Lopes, presidente da Associação Nacional de Produtores de Cachaça de Qualidade (Anpaq).
A cachaça mineira foi inclusive destaque no ranking da 3.ª Cúpula da Cachaça, que no final de janeiro elegeu as 50 melhores “marvadas” do Brasil em degustação às cegas. A Vale Verde, envelhecida 12 anos em carvalhos e produzidas em Betim, conquistou o primeiro lugar, que na edição anterior pertencia à paranaense Porto Morretes Premium. Além disso, Minas Gerais colocou mais 11 cachaças no ranking, sendo o estado mais premiado e confirmando a qualidade da produção local.
Quem está apostando na cachaça é o casal Enaldo Lopes e Ariane Guimarães, que inaugurou, em dezembro do ano passado, duas lojas da cachaçaria Trilha Real, com cerca de 300 rótulos para venda. “Para nós, a cachaça merecia um espaço sofisticado, até para valorizar um produto que é muito brasileiro e mineiro. Pelo menos 70% do que vendemos é produzido em Minas”, conta Ariane. O próximo passo das duas casas é passar a oferecer pratos e tira-gostos que harmonizem com as branquinhas e amarelinhas. “Estamos passando pelos primeiros ajustes, e, depois, vamos focar na gastronomia”, diz Ariane.
Cachaça na comida
Dentro das cozinhas, aliás, a bebida também passa por um bom momento. Ingrediente típico de receitas tradicionais de Minas Gerais, como o tutu de feijão, a aguardente tem mostrado versatilidade e entrado na composição de diversos outros pratos e até de sobremesas.
A chef Sabrina Gomide, da escola de gastronomia Experimente Cozinha Food Lab, ensina a seus alunos uma versão do chantilly que leva uma dose da caninha envelhecida em tonéis de amburana. “Ela tem um toque que lembra baunilha, tem tudo a ver com doce”, garante Sabrina. Segundo ela, a cachaça também pode substituir qualquer álcool na panela. “Ela pode entrar no lugar do vinho branco em um risoto ou para flambar, como se usa o conhaque”, exemplifica.
O destilado entrou também em três pratos que ela desenvolveu para o restaurante e bar Piu Braziliano, no bairro Buritis, região oeste de Belo Horizonte. Entre as pedidas, que estreiam no cardápio em janeiro, está a goiabada empanada na castanha de caju com sorvete de queijo da serra da Canastra e cachaça. “A maior dificuldade ainda é enfrentar um estigma que ainda persiste sobre a bebida”, avalia Sabrina.
A opinião da chef é a mesma do mixologista Filipe Brasil, um dos criadores de drinks mais requisitados da capital mineira. Entusiasta da caninha, ele conta que houve, no início da década, uma tentativa de reposicionamento da cachaça justamente para enfrentar o preconceito que muita gente ainda tem sobre o consumo da aguardente. Só que a medida não teve bons resultados. “Focaram muito no empresário e no distribuidor, e esqueceram dos garçons, bartenders e donos de bares, que são quem está na ponta, lidando diretamente com o cliente e que tem poder de indicar e sugerir uma bebida”, avalia.
Para resolver isso, ele está desenvolvendo uma carta de cachaças para implantar nos mais de 70 restaurantes onde ele já assina a carta de coquetéis, detalhando as diversas opções. “Uma pessoa que pede uma margarita, por exemplo, está com o paladar para tomar uma caipirinha. E aí vamos poder perguntar qual cachaça ela prefere, envelhecida em qual madeira, se quer mais ácida, mais encorpada. A variedade é imensa”, conta Brasil.
Segundo ele, até entre seus colegas existe um receio do uso da caninha, motivado pelo preconceito. “Existiu durante muito tempo aquela figura do pinguço, mas estamos quebrando isso. A cachaça é um destilado como qualquer outro, com a vantagem de ser brasileiro, de ter uma carga histórica e cultural maravilhosa. O público ainda tem um certo receio de pedir uma dose, mas isso está mudando aos poucos”, comemora.
Novo regime fiscal mais favorável
Além da mudança de comportamento do público, outros fatores têm ajudado as branquinhas e amarelinhas. Um deles é uma alteração na tributação da produção artesanal da bebida, feita em alambiques, que passou a ser enquadrada pelo Simples. Segundo José Otávio Lopes, até o ano passado os impostos representavam cerca de 85% do preço do produto final. “Era inviável, principalmente porque 98% dos produtores são pequenos e médios empresários”, avalia ele, que produz a cachaça Bem Me Quer.
Agora, com o novo regime fiscal, foi possível reduzir o preço para o distribuidor em até 20%. “A minha cachaça envelhecida em tonel de amburana, na garrafa de 600 mililitros, chegava para o distribuidor custando R$ 15,07, Agora em janeiro já reduzi para R$ 12,57, e, acredite, estou lucrando mais do que lucrava”, comemora.
Outra frente que promete uma vitória para as branquinhas e amarelinhas é a exportação. A possibilidade de levar a nossa caninha para outros países empolga Lopes, que já manda parte da sua produção para os Estados Unidos. Hoje, o Brasil exporta, segundo a Anpaq, 14 milhões de litros por ano, o que representa apenas 1% da produção nacional. “O México exporta mais de 80% da sua produção de tequila. Ou seja, temos um potencial imenso de crescimento lá fora”, detalha Lopes.
O único entrave, segundo ele, tem sido as diferentes regulamentações, que variam entre cada país. “As regras de bebidas alcoólicas são muito rígidas, o que faz com que o produtor artesanal, que faz a cachaça em alambiques, não tenha muito interesse na exportação por achar que vai ser difícil. Mas estamos preparando uma cartilha para facilitar a compreensão das diversas regulamentações. Podemos tornar a cachaça no destilado mais consumido do mundo”, conclui.
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