Bom Gourmet

Arrabia Cucina

A Xepa, com André Bezerra e convidados
A Xepa, com André Bezerra e convidados
02/12/2025 17:28
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Crédito: Bigstock

Por André Bezerra*
Ela, braba, era de lascar. “Pimenta!” - gritou o Luciano do quarto - ela na cozinha - “Eu me casei com uma pimenta malagueta, Dio mio, que sina.”
“Escolhas, meu amor!” - respondeu ela, entre lágrimas. Não de tristeza, se divertia durante as discussões acaloradas com ele, mas por causa da cebola que cortava para a canja. Então, esmagou cada dente de alho com o comprido da faca, uma técnica ancestral para descascá-los com facilidade. “Uma pimenta malagueta”. A voz do marido reverberou na cabeça dela enquanto martelava o alho que iria se juntar à cebola no fundo da panela. Se dedicava ao preparo da canja enquanto imaginou que eram as falanges dos dedos do Luciano que ela martelava.
Casados há alguns anos, Marta aprendera a cozinhar ainda pequena, frequentando a cozinha da avó, observando ela e, um pouco maior, a mãe. Era, portanto, a terceira geração de cozinheiras. A avó, Maria, tinha nascido e crescido na Toscana, berço da bistecca alla fiorentina. Da Nonna, herdou o apreço pela cozinha rústica e simples, pela qualidade de seus ingredientes, como o azeite de oliva extra virgem, o pão sem sal e os vinhos. A Mamma, Daniela, nasceu no interior do Rio Grande do Sul. Dela, Marta herdou uma peculiaridade ímpar: quanto mais brava ou contrariada estivesse enquanto cozinhava, melhores e mais arrebatadores saíam os pratos.
É fato que cozinhar com amor e tempo tende a refletir positivamente nesta alquimia chamada culinária. Quase tudo corrobora no momento de finalizar uma receita. Pensamentos são como especiarias, sensações ditam a temperatura, conduzem o tempo da cocção. A raiva e a contrariedade deixam Marta mais à flor da pele. Assim como a mãe italiana, ela explode apaixonadamente. “Vai via, Luciano! Vá la ver se eu estou na esquina”, esbraveja enquanto bate a nata fresca na mão e o mascarpone do tiramissú dela é de comer olhando para a Pietá. Traz na memória a cena - reincidente - da Mamma esbravejando contra o pai enquanto escolhia os feijões, amaldiçoando os irmãos ao mesmo tempo que ralava o milho bem caipira. A Mamma colhia o café no próprio quintal e torrava ao sol. Na hora de moer os grãos, tecia um rosário de maledicências contra o vilão da novela das oito, como se ele pudesse ouvi-la. À noite, em volta da mesa, todos suspiravam diante do melhor tutú, do curau mais formidável, enquanto bebiam o café passado mais aromático e delicioso. As vizinhas atravessavam a rua - caneca na mão - para provarem um pouco do café da Daniela. “Qual é o segredo, comadre?”perguntavam e ela respondia, com sinceridade: “L’arrabia, Dona Salete. A raiva.”Foi nessa atmosfera de “arrabia i amore” que Marta cresceu e se criou, a maior parte do tempo observando avó e mãe.
Conheceu Luciano na cozinha do restaurante dele, onde foi trabalhar ainda jovem. Um dia, por acidente, fez um corte no próprio dedo. Ele veio acudi-la. “Eu disse para tomar cuidado com as minhas facas, garota. Quando afio uma faca, ela corta até pensamento.” Pela primeira vez sentiu o calor do olhar da cozinheira como se fosse lava brotando do Vesúvio. Enquanto ele estancava o sangue dela com sal, gase e esparadrapo, ela recomendou: “Por que você não vai afiar as suas facas com este seu nariz de tamanduá, porca miséria?” Feito o curativo, Marta terminou de preparar a lasanha bolonhesa que fez Luciano se apaixonar irremediavelmente.
Houve uma ocasião quando ele, com dificuldades para manter o restaurante, anunciou para a esposa sua intenção de fechar e vender o ponto. Ela pediu que ele esperasse mais um semestre, que pensariam em algo. Ao mesmo tempo que se internou na cozinha, passou a reorganizar as contas que não paravam de chegar. Coordenava cozinheiros e, nos intervalos, estabelecia prioridades. Também telefonava e recebia, pessoalmente, cada credor. Entre as desmesuras que ouvia e as ameaças de ações, criou novas receitas, enxugou o menu, reduziu e reciclou o time de cozinheiros e garçons, recebeu gerentes de banco para almoçarem, abriu linhas de crédito, assumiu novas dívidas. Começou a fazer uma obra para repaginar cozinha, salão e áreas de serviço. Chorava escondida, controlou cada impulso de esganar e matar. Porcionava o frango como se esquartejasse peões de obra. Marinava os cordeiros como se afogasse eletricistas e marceneiros. Tratava, pessoalmente, da depressão do marido. Se encarregou da salumeria artesanal, da produção dos queijos, das massas de fermentação longa. Ensinava os cozinheiros a defumarem, a produzirem um bom copa de porco Moura. Observava, atentamente, sua equipe amarrar e pendurar salames, pastramis e queijos. Imaginava todos aqueles barbantes envolvendo os pescoços de pessoas que ela queria ver pelas costas.
No sexto mês, reinauguraram o restaurante, repaginado da cozinha às ferramentas de gestão. Especialistas e amadores, todos amantes da autêntica gastronomia, começaram a aparecer. Acabavam voltando e traziam mais gente. Amigos, colegas, familiares. Contas e credores foram minguando até zerarem e o saldo voltar para o “azul”. Só faltava uma coisa. “La Mamma que me perdoe”, anunciou Marta para Luciano. E trocou o nome do restaurante. De Santa Daniela, passou a chamar-se Arrabia Cucina Apaixonada.