Bom Gourmet
Quem é o jovem chef que inventou a cozinha “neofiórdica”
Bergen, Noruega – “Esta bolinha deprimente representa o passado da culinária norueguesa”, diz o chef Christopher Haatuft, colocando um pedacinho desenxabido de pão de centeio com manteiga de cavala defumada delicadamente no prato.
“E este é o futuro, do jeito que ele deve ser”, completa, apontando para os pedaços de alabotes (peixes dos mares frios que pode pesar até 180 kg) curados com sal e açúcar, guarnecidos com lascas de raiz forte e brotos de alfafa.
“E este aqui é só de zoeira”, conclui, com um pedacinho de pão chato de batata envolvendo um tico de arenque em conserva. É uma alusão à comida de rua de fim de noite que o chef de 37 anos conheceu na época da adolescência, curtida no cenário punk desta cidade – e uma piada com a dieta norueguesa, tradicionalíssima e inescapável, composta da dupla batata e peixe.
Nas três amostras servidas no Lysverket, casa que comanda aqui, ele reúne tudo o que quer que a cozinha nacional seja: nostálgica, sustentável, criativa, deliciosa e bem-humorada. Apesar de ter nascido em Bergen, sua mãe é norte-americana – e a dupla nacionalidade lhe permitiu passar dois anos nas cozinhas ambiciosas dos EUA, como as do Per Se, Alinea e Blue Hill at Stone Barns, depois de ter se formado na Europa.
Voltou para Bergen, em 2012, com a intenção de abrir o próprio negócio, mas primeiro teve que estabelecer sua relação com a nova culinária nórdica, rótulo inevitavelmente atribuído a todos os chefs escandinavos modernos. Seu compromisso com a comida local, pura e bela, provou ser mais que uma tendência passageira e se transformou em um movimento internacional sólido, liderado por nomes como René Redzepi, do Noma, e Christian Puglisi, do Relae de Copenhague, Gunnar Gislason, do Agern, em Nova York, e Esben Holmboe Bang, do Maaemo, em Oslo (único restaurante norueguês com três estrelas do Michelin).
Muitos chefs dessa corrente são guiados por manifestos solenes sobre a natureza e a cultura; restringem-se aos ingredientes escandinavos, substituindo tomate, azeite de oliva e pêssego por sabugueiro, óleo de espinheiro e agulha de pinheiro. (Essa última, de acordo com Haatuft, faz parte da “eterna busca nórdica pela acidez cuja fonte não seja o limão”.)
E uma vez que ele é tudo, menos solene, decidiu criar uma nova descrição para a comida que serve no Lysverket: neofiórdica. “No começo era piada, mas são os fiordes que diferenciam a Noruega e é exatamente o mesmo que quero para a minha comida.”
Muitas coisas são únicas a respeito da geografia norueguesa, a maioria das quais dificulta o trabalho de Haatuft: comparada com o terreno acidentado de Bergen, a área que cerca Copenhague, cidade onde surgiu a nova cozinha nórdica, é tão ensolarada e agradável quanto o sul da França.
Aqui chove mais de 230 dias por ano, somente três por cento das terras são aráveis e o inverno é tão longo que é dividido em duas partes. (Morketid, ou “época escura”, começa em outubro e vai até o Soldagen, ou “dia do sol”, em janeiro, quando a luz reaparece, mas o tempo continua cada vez mais gélido.) A Dinamarca tem mais sol, verões mais longos e um terreno plano e fértil o bastante para ser cultivado.
Por causa dessas condições difíceis, da limitação à posse das terras e do isolamento frígido de muitas áreas rurais, a Noruega da era pré-industrial era particularmente inóspita aos pequenos agricultores que, aliás, compunham a maior parte da população. Ao final do século XIX, milhares de noruegueses – na verdade, um terço dos habitantes – começaram a imigrar para os EUA.
“O grande desafio dos produtores noruegueses não era decidir que tipo de maçã plantar, mas como não morrer de fome. O fator gostosura era um luxo ao qual não podiam se dar”, explica Haatuft.
Em vez então de voltar ao passado para buscar inspiração, começou a formular a seguinte hipótese: “Se a porção ocidental da Noruega fosse uma região da França, do que seus chefs poderiam se gabar?”. “Poderiam ter orgulho da cavala defumada. Teriam que tirar as partes escuras para deixá-la bonita, acrescentar manteiga para dar corpo e deixá-la macia, além de lhe realçar o sabor.”
E é exatamente isso que Haatuft faz no Lysverket.
O fiskesuppe, sopa de peixe tradicional de Bergen, sempre foi engrossada com farinha de trigo; em tempos modernos, a receita ganhou gemas e creme azedo para enriquecer o caldo – mas para o toque excepcional, Haatuft também usa um fio de óleo de alho-poró, cenoura picada e aipo-rábano em conserva no vinagre destilado. “É o que a minha avó usava; por que eu haveria de trocar pelo de vinho?”, questiona ele.
Uma sobremesa servida no Lysverket é um bolo levíssimo, feito com amêndoas, chocolate e gjetost, o queijo de cabra cremoso e caramelado que se parece muito com o dulce de leche latino-americano e que é uma verdadeira obsessão nacional.
Para ter acesso aos ingredientes de que necessita, Haatuft passa a maior parte do tempo interceptando lotes de arenque fresco antes de serem levados para o mercado central (na Noruega, os pescadores não podem comercializar diretamente com os chefs), rastreando mergulhadores e estimulando os fazendeiros da região a cultivar opções diversificadas.
Para garantir o fornecimento constante de carne de porco, convenceu o amigo Anders Tveite, chef que virou criador, a começar a investir na raça Mangalitsa, cuja pelagem grossa permite que viva ao ar livre o ano todo, mesmo nessas montanhas inóspitas que continuam cobertas de neve no alto verão. Em troca, Haatuft prometeu comprar toda a carne que a propriedade quisesse vender.
“Simplesmente não há opções de bons produtos por aqui. Não é como no Per Se, por exemplo, onde eu posso procurar seis, sete outros produtores se o meu fornecedor principal não tem o que eu quero. O que tem é o que é”, comenta, subindo entre as plantações de morango da região montanhosa de Voss, a nordeste de Bergen.
Embora o movimento que destaca a comida local, sustentável e tradicional seja relativamente novo por aqui, está crescendo rapidamente. E além de oferecer generosos subsídios agrícolas, o governo agora custeia a educação agrícola, start-ups alimentícias e o gastroturismo, divulgando e apostando entusiasticamente na riqueza dos frutos do mar, de suas safras e na habilidade e competência de seus chefs.
No galpão de abastecimento de Sotra, uma ilhota na costa atlântica, cercado por tonéis de frutos do mar, Haatuft abre uma vieira do tamanho de um pires, tirando o manto e as ovas para chegar à carne abundante. Soltando da concha com o canivete, ele comenta os movimentos e a água salgada que lhe dão um sabor tão vivo.
Horas depois, já no restaurante, ele grelha as vieiras só de um lado, para manter o músculo firme, para depois combiná-las com um punhado de minirrabanetes e um purê forte e amargo de flores capuchinhas. (Como o endro, a azedinha, o alho selvagem, o levístico e outras ervas pungentes, ela é abundante no clima nórdico.)
O que está em falta em Bergen são os sous-chefs, mas Haatuft não pretende começar o recrutamento.
“Por que eu haveria de encorajar o pessoal a investir em um emprego desgastante, de 16 horas por dia, quando aqui na Noruega podem trabalhar sete no conforto de um escritório e ainda, de quebra, ter assistência médica de graça?”, pondera.
“Quero aqueles que não sabem fazer mais nada a não ser cozinhar, que não sonham com outra coisa na vida a não ser chef. Tipo eu.”
LEIA TAMBÉM